09 de Enero de 2020
[Por: José Neivaldo de Souza]
Quem não conhece o vilão das produções cinematográficas nas quais o Batman é o protagonista? Jamais pensei em outra narrativa que provocasse um sentimento de solidariedade e compaixão por boa parte daqueles que assistiram ao Longa-metragem “Coringa”. O drama, produzido pelo diretor Todd Phillips, tendo como protagonista o ator Joaquin Phoenix (Arthur Fleck/Coringa), nos instiga a trazer para o debate a questão da identificação. O que é identificação? Como ela é perceptível no filme? Como ela se dá na sociedade?
Freud em sua obra: “Psicologia das massas e análise do eu” abordou o conceito a fim de expressar esta realidade psíquica, fundamental na constituição dos relacionamentos. Fundamental porque à identificação é associada a forma mais primitiva da convivência humana: o “eu” se coloca diante do “outro” e se vê afetado por ele seja por amor ou ódio.
O “outro” aqui é entendido como uma pessoa, um objeto, a sociedade ou tudo o que se coloca fora do “eu” ou do sujeito. No “outro” há traços que capturam o “eu” naquilo que idealiza ou rejeita. Apoiado neste enlaçamento, o “eu” vive uma relação de introjeção e projeção. Na introjeção, interioriza algo que lhe falta ou deseja assimilar do “outro”. Na projeção, exterioriza algo que rejeita, atribuindo ao outro, aquilo que é odiável em si mesmo e que deseja expurgar.
Nesta dinâmica podemos falar de uma multidão de “eus” que se identificam com os seus líderes, porque são fisgados por eles, isto é, idealizam uma imagem boa deles e se aferra a ela. Apesar da imagem nunca ser completa, porque o desejo nunca se satisfaz, o sujeito se reconhece nela. Freud chama este espelhamento de identificação narcísica.
O personagem Coringa é muito sugestivo nesta análise, já que pode ser visto como sujeito em busca de identificação. Procurou a vida toda, ainda que forçado, se identificar com a imagem que idealizava da mãe: desejosa de ter um filho feliz e capaz de fazer as pessoas sorrirem. Mas, é preciso, portanto, observar a sociedade em que ele vive, este “outro” com quem busca se relacionar e se identificar.
Gotham é uma cidade dividida entre os “cidadãos de bem” e os “bandidos”. Os primeiros, representados pelo político bilionário Tomas Waine e pelo midiático Morray; os outros, representados pelo Coringa e aqueles que nas ruas se revoltam contra uma estrutura social injusta que acolhe bem os ricos, os sãos, os bem empregados, mas despreza os que vivem em subemprego, os desempregados e marginalizados, privados de direitos. Estes são entendidos como uma ameaça à cidade. As palavras do Coringa retratam esta realidade injusta que explora os trabalhadores e ignora os seus direitos. Ele sofre as dores de uma camada social que precisa sobreviver.
A princípio Arthur Fleck, mesmo com limitações psíquicas, trabalha como palhaço e consegue se sustentar, fazer terapia, comprar seus remédios e cuidar da mãe. Mas, alguns dissabores mudam o rumo de sua vida: recebe uma arma para se impor no trabalho; reage à violencia dos jovens ricos, no trem, e os mata; fica desempregado; a prefeitura encerra o programa de assistência social cortando o direito à terapia e aos remédios; descobre que fora vítima de abuso na infância e com o consentimento da mãe etc.
O seu mundo começa a se transformar. Percebe as injustiças sociais: enxerga a situação tensa pelas quais passam os desempregados que lutam para sobreviver. Vê-se deslocado numa sociedade onde “As pessoas só gritam e berram umas com as outras e ninguém nunca é educado”. Reclama que este sistema corrupto e desigual trata as pessoas como cobaias de laboratório, isto é, enquanto são úteis à sociedade, tudo bem, quando não servem mais, são descartáveis. Acerca disso, chama atenção o que ele escreve em seu caderno de piadas: “A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não a tivesse”.
Gotham City teve sua importância na vida de Arthur Fleck, o Coringa. Qual é a diferença entre a frase de Thomas Wayne, o pai do Batman: “Gotham perdeu os sentidos.” E a frase de Arthur Fleck: “É impressão minha ou o mundo está ficando mais louco?” Depende da perspectiva de classe. Tomas Wayne se solidariza com os ricos que procuram purificar a cidade e Arthur Fleck com os mais pobres, vitimas deste sistema desigual e, por isso, é visto como culpado. O apresentador de tv, Morray Franklin, que se diverte zombando dos pobres, fazendo o jogo da elite, produzia esta ideia: “Pare de rir. A cidade toda está em chamas por sua causa”.
Esta indiferença nas relações sociais produz o Coringa, pois nada pode resgatar a perda dos direitos e dos vínculos de amor e justiça. Arthur se identifica com Morray, via nele a possibilidade de realizar o seu ideal e de sua mãe: “fazer os outros rirem”. Introjetava o comediante, mas decepciona-se com a imagem que havia criado do apresentador. O coringa se identifica com Gotham, o povo , feito de palhaço pela elite de Gotham, se identifica com o Coringa, na medida em que ele lidera a oposição e tem coragem de fazer justiça com as próprias mãos e se fazer perceber numa sociedade onde os desvalidos são invisíveis. Nesta postura, ele cria uma relação de simpatia com esta população e, inclusive com muitos espectadores que sentiram compaixão e que, junto com ele, também têm “dias ruins”.
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