28 de Marzo de 2019
[Por: José Neivaldo de Souza]
Tenho poucos amigos! Talvez o problema seja meu e não dos outros, quem sabe? Ouço a “Canção da América” de Milton Nascimento e Fernando Brand. Algumas palavras me fazem pensar: “Amigo é coisa pra se guardar debaixo de sete chaves... do lado esquerdo do peito... Seja o que vier... Venha o que vier”. À luz desta canção quero pensar sobre o valor da amizade.
“Amigo é coisa pra se guardar”. Nunca ouvi uma análise de Nelson Mota ou algum crítico de música acerca da cena que esta canção descreve. O que é um amigo guardado debaixo de “sete chaves”? Longe de trancar alguém, em nossa gaiola das paixões, é bom pensar a amizade como liberdade, querer e cuidado. Guardar é cuidar; é estar atento à pessoa que queremos bem, mas é também deixar que ela se vá, que tenha autonomia em seu caminho. Aristóteles, filósofo grego, entendeu que amizade é reciprocidade. Não posso exigir o que eu não posso dar. Em outras palavras: devo me comportar em relação ao outro da mesma maneira que eu gostaria que ele se comportasse em relação a mim.
“Sete chaves” significa cuidado! Na semântica judaico-cristã o número sete quer dizer perfeição, totalidade: Deus fez a criação em seis dias e no sétimo a abençoou e descansou (Gn 2,1-3). No Novo Testamento, Pedro, ao se aproximar de Jesus, pergunta quantas vezes deve perdoar o seu ofensor. Jesus responde: “setenta vezes sete”. Ele indica que na perfeição não há limites (Mt 18,21-22). As “chaves” são metáforas de segurança. Jesus passou as “chaves” do Reino para os seus amigos (Mt 16, 19). O amigo cuida da amizade assim como o guardião cuida do tesouro guardado a “sete chaves”.
“Do lado esquerdo do peito”. Esta expressão, em forma musical, soou ao compositor como uma poesia ou um refrão que vai fundo, que toca o centro das emoções: o coração. Vejo a imagem de um “trem de ferro”, como dizem os mineiros. Ele está partindo. Alguém, com lágrimas nos olhos, se despede do amigo. Triste porque ele se vai, mas alegre porque ele precisa ir. “Esquerdo” é o lado do coração, dos sentimentos, principalmente do cuidado. Se o tempo e a distância separam, o coração mantém a presença. Nele foram gravadas histórias que realmente interessam: momentos de prazer e dor, de decisões, de erros e acertos.
Quem são os amigos? Não acredito em falsos amigos. Se é amigo, é verdadeiro! É capaz de suportar sua alegria e entender suas dificuldades. Clarice Lispector percebeu que as amizades mais duradouras foram construídas em tempos difíceis. Há uma fábula de Esopo que trata disso: Os viajantes e o Urso. Dois viajantes toparam com um urso. Um deles subiu na árvore, mas o outro, não conseguindo, se jogou no chão fingindo-se de morto. O animal, cheirando sua orelha, entendeu que o homem estava morto e se foi. Descendo da árvore, o colega perguntou sobre o que cochichava o urso. O amigo então respondeu: “ele me disse para não sair por ai com gente que se diz ser meu amigo, mas me abandona na hora da desgraça”.
É isso! As dificuldades põem à prova a verdadeira amizade. Confúcio dizia que na riqueza há amigos em quantidade, mas nos infortúnios há amigos de qualidade. Estes nos amam a ponto de nos desagradar pela frente e nos defender quando não estamos por perto. Resta-nos invocar um coração capaz de amar, assim como o salmista: “Cria em mim um coração puro, Ó Deus, e renova em mim um espírito generoso” (Sl 51,10), pois como ensinou Jesus: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos” (Jo 15,13). Estou disposto a dar minha vida por quem amo?
A música “A canção da América” me ajuda a refletir sobre a amizade. Nas dificuldades, nos infortúnios e na desgraça que os amigos, aqueles que mais prezamos, precisam de cuidado. A canção termina de forma esplêndida:
“Pois seja o que vier
Venha o que vier
Qualquer dia amigo
Eu volto a te encontrar
Qualquer dia amigo
A gente vai se encontrar”.
Imagem: https://gutenberg.rocks/datos-que-no-conocias-acerca-de-la-amistad/
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