02 de Marzo de 2018
[Por: José Neivaldo de Souza]
A Frase do filósofo L. Feuerbach, em A Ciência Natural e a Revolução, me chama atenção: “ser significa comer”. Concordo! Esta é a lei natural. Alguém pode dizer: “não só de pão vive o ser humano”. De fato, se o ato de comer for reduzido à ação de ingerir alimento sólido, tem razão. Mas, Jesus coloca, em primeiro lugar, a fome de Deus, por isso todo alimento é dádiva, é graça divina. “A Palavra se fez carne”. Antes do alimento, o Espírito que o santifica. O profeta Jeremias expressou bem isso: “Quando encontrei tuas palavras, alimentei-me; elas se tornaram para mim uma delícia e a alegria do coração” (15,16). Aqui a comida será tratada como um dom e arte de prepará-la como doação.
Abro a Bíblia e me deparo com um provérbio: “É melhor comer um prato de hortaliças, onde há amor, do que ter um boi cevado acompanhado de ódio na refeição” (Pr 15,17). Minha reflexão segue este caminho: um pedaço de pão, comido em paz, vale mais que um banquete devorado na angústia. Este entendimento muda a forma como recebemos o dom. O rabino Nilton Bonder, em seu livro Cabala da Comida, observou bem: “Quando nos sentamos para comer, estamos diante da possibilidade de realizar um ato divino: está em nossas mãos fazê-lo de maneira saudável ou não”. Isso mesmo: “possibilidade”. A comida, em si, é uma dádiva, o que fazemos dela pode nos salvar ou condenar.
A comida nos salva! Além do ato de comer está a fome de Deus. Esta fome espiritual dá sentido à fome física. Faz-nos partilhar o nosso pão, amar os outros; nos traz tranquilidade de alma. Uma história ilustra o que digo. Em casa éramos cinco irmãos. Meus pais lutavam com dificuldade para nos dar o básico: saúde e educação. Não foram poucas as vezes que eu os vi em jejum para que pudéssemos comer. Lembro, como se fosse hoje, não tínhamos nada para o jantar. Minha mãe conseguiu, com a vizinha, uma caneca de canjica e cozinhou para nós. Que alegria! Vizinha abençoada! Sentamos para partilhar a dádiva. Observo nossa mãe e pergunto se ela não vai comer. Com o olhar compassivo diz que prefere comer no nosso prato. Levo a colher cheia à boca dela e ela finge comer. Exclama: “Humm delicia!”. O milagre da multiplicação ocorreu naquela cozinha e uma mentirinha nos animou: “É a canjica mais saborosa que já fiz”. Alegrava-se, mesmo com o estômago vazio, em nos ver satisfeitos. Ela nos ensinou a partilhar o pouco com muitos.
A comida nos condena! Se o ato de comer se reduz a preparar o alimento necessário à existência humana, onde nada é partilhado e ninguém se importa com a desigualdade, então de nada vale. E, se além disso o banquete de poucos, comido na ansiedade, leva ao sofrimento e à forme de muitos, o dom não foi bem recebido. Nilton Bonder escreveu: “O mau recebimento” acarreta o mal-estar físico, que é um aviso enviado desde o corpo, as sensações e o espírito de que algo não vai bem, uma luz amarela de atenção, antes de cairmos doentes. As doenças são alarmes de “mau recebimento” em diversos níveis: em nível físico manifestam-se sob a forma de dor, feridas, manchas e odores; em nível emocional, como distúrbios do sono e do sistema nervoso; em nível espiritual, como atentados contra o próprio fluxo vital sob a forma de negativismo e impulsos destrutivos”.
Assim como é o ato de comer é também o ato de cozinhar. A cozinha deveria ser o sacrário da casa, lugar onde o alimento é purificado e abençoado; lugar onde se tece os sabores agradáveis ao paladar. Mia Couto, em Fio das Missangas, escreveu: “Cozinhar é o mais privado e arriscado ato. No alimento se coloca ternura ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno. Cozinhar não é um serviço. Cozinhar é um modo de amar”. Deus me livre comer algo cozinhado por alguém Insatisfeito consigo mesmo, amargurado com os colegas de trabalho, sem fé e esperança na vida.
Observo as pessoas no restaurante. Elas saboreiam primeiro pelo olhar e depois pela boca. Sábio Rubem Alves! Escreveu em Variações sobre o prazer: “A culinária tem, dentre outros poderes, o de colocar sabor nos olhos e de colocar cores na boca. A culinária liga a boca aos olhos, o sabor ao olhar”. Que belo pensamento. Para ele, espiritualidade é arte de partilhar uma abençoada refeição: “a eucaristia é uma comida que se come para que os olhos se abram”.
Saborosa é a comida feita com carinho, alegria, dedicação e amor. O tempero, as cores, a variedade de pratos, ainda que simples, expressam uma beleza que se deitará ao paladar de alguém. Cozinhar e partilhar a comida é uma forma de amar; é uma forma de receber o dom e doá-lo.
Imagem: http://fisiovidaysalud.blogspot.com/2014/04/programa-de-educacion-para-la-salud.html
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