02 de Febrero de 2018
[Por: José Neivaldo de Souza]
Deparei-me com uma frase do Padre Antônio Vieira, um dos grandes mestres da literatura brasileira. Dentre os temas que aborda com maestria a vontade parece ter um lugar especial. É um problema da alma humana que, eternamente sedenta, não descansa enquanto não se realiza na sua busca seja produzindo amor ou ódio, os dois maiores afetos de nossa vida.
Perguntei a uma pastora sobre a vontade, ela disse que não há outra a não ser a divina. Em outras palavras, nosso destino está nas mãos de Deus e o que nos cabe é a renúncia em favor de uma vontade soberana. Por outro lado, um amigo ateu e humanista, numa conversa me disse que a vontade humana é autônoma, causa de nossas escolhas e decisões, boas ou más. A partir dessas ideias, me propus a pensar o conceito considerando-o tanto numa perspectiva da revelação cristã quanto numa ótica puramente humanista.
O termo Voluntas, do latim, diz respeito à faculdade pela qual o ser humano busca um sentido, ou um caminho e procura realizá-lo. Há um provérbio inglês que diz: “onde há vontade, há caminhos”, Concordo! A vontade nos faz seguir em frente, ela é soberana em todas as circunstâncias da vida, ainda que o desejo, este ser estranho e inconsciente, nos habita. Ela tem o poder de modificar o nosso comportamento, a cultura, seja em nosso favor ou contra nós.
Na perspectiva cristã há um caminho revelado para o qual a vontade divina aponta: Jesus, o Messias. Esta certeza não nasceu da carne, mas do Espírito, como escreveu o evangelista João (1,13-15). Em Deus tudo se cria e fora dele nada se faz. A oração do Pai-nosso expressa esta verdade: “...seja feita a Vossa vontade assim na terra como no céu” (Mt 6,10). São Paulo sofre com a dificuldade de conjugar as duas vontades, humana e divina. Em sua carta aos Romanos desabafa: “Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero eu pratico” (Rm 7,19).
Santo Agostinho, leitor de São Paulo, entendia que tanto o amor quanto a esperança e a fé são atos submissos à vontade. Tenho vontade de amar, por isso amo: “ame e cumpra a sua vontade”. Se há vontade para lutar, logo há esperança de vencer. Se há fé, há vontade de crer. Ainda que nossa intenção seja boa, sem vontade, nada sai bem. Para Agostinho, todo esforço na busca de sentido provém de uma vontade que nos transcende. Em suas Confissões, observa que a vontade, pervertida, leva ao afastamento de Deus: ela “se volta para as criaturas inferiores; e, esvaziando-se por dentro, pavoneia-se exteriormente”.
São Tomás de Aquino em sua Summa Theologiae diz que a vontade é um apetite e o distingue nos animais e nos humanos. Há o apetite sensitivo e o intelectivo. O apetite intelectivo goza do privilégio de ser livre e soberano, pois ele pode agir ou não; fazer isto ou aquilo; praticar o bem ou o mal. Apesar de ser inteligente, a vontade é superior ao intelecto, ela se volta para os bens eternos contemplando o fim último de todas as coisas.
Numa ótica humanista e racional podemos falar de uma vontade soberana e autônoma em relação à vontade divina. Não existiria cultura se não houvesse uma vontade natural e autônoma para a convivência humana. Ésquilo, considerado o pai da tragédia grega, entendia que até os deuses se dobravam à força humana. Epiteto mostrou, em sua filosofia, que dependendo de sua escolha e interesse, a vontade se direciona para bem ou para o mal; para a verdade ou falsidade; para o céu ou inferno. Contra a vontade nada sai bem. Há coerência neste pensamento.
Um jardineiro, contra a sua vontade, não cultivaria um belo jardim, não plantaria lindas flores, pois o que vai fazer dele um grande jardineiro é a vontade de ser jardineiro. Muitos chamam isso de vocação. Força para trabalhar todo mundo tem, mas vontade para a sua execução é o que pode faltar. O dramaturgo Terêncio, no segundo século antes de Cristo, dizia que ainda que a execução de uma obra seja fácil, ela parecerá muito difícil se for feita de má vontade. O escritor francês, François Rabelais, observou certa vez que a dificuldade da vida está em não se utilizar da boa vontade.
Seja numa perspectiva da revelação cristã ou humanista a vontade é essencial na busca de sentido. Fernando Pessoa louva a vontade de viver. Sem ela, não chegamos a lugar algum: “a estação do ano muda, o século vira, o milênio é outro e a idade aumenta, mas a vontade deve ser conservada”. No momento em que escrevo escuto música “Senhas”, com Adriana Calcanhoto. A letra fala do poder da vontade na empatia e no gosto:
Eu gosto dos que têm fome
Dos que morrem de vontade
Dos que secam de desejo
Dos que ardem...
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