16 de Enero de 2018
[Por: Agenor Brighenti]
No contexto da celebração do cinquentenário do Concílio, resgatado por Aparecida e o pontificado reformador do Papa Francisco, é oportuno revisitar o maior acontecimento eclesial do século XX e colocar em relevo, numa série de dez pequenos artigos - “em que o Vaticano II mudou a Igreja”. Apesar dos que tentaram minimizar seu alcance, o fato é que o Concílio mudou e mudou muito a Igreja. Como serão apenas dez artigos, vou tentar selecionar as dez maiores mudanças.
Comecemos com a grande mudança feita pelo Vaticano II, na relação da Igreja com seu contexto: no âmbito eclesial, a passagem da contra-Reforma de Lutero a uma profunda mudança na Igreja; e, no campo social, a passagem da mentalidade medieval ao mundo moderno.
Da contra-Reforma à reforma
Na realidade, o Concílio Vaticano II deveria ter acontecido ainda no Concílio de Trento (1545-1563), pois o desejo de uma profunda reforma na Igreja vinha de longe. Entretanto, naquela oportunidade, em lugar de acolher muitas das reformas exigidas, especialmente por Lutero, a Igreja fez uma contra-Reforma, que passou pelo Vaticano I (1869-1870) e chegou até o Concílio Vaticano II.
Desde o século VIII, dado o distanciamento gradativo do modo como a Igreja primitiva viveu a fé cristã, havia um movimento de “volta às fontes” (ad rimini fontes). A inserção da Igreja na cultura helênica e sua estreita ligação com o império romano tinham introduzido muito do paganismo no cristianismo. O movimento começou quando por volta de 783, o imperador Carlos Magno uniformizou a prática cristã, segundo a cultura e o estilo franco-germânico. A descaracterização da fé cristã havia ficado mais evidente na liturgia, tanto nas vestes, como no rito e nos conteúdos. A reação primeiramente veio de papas e depois, na virada do primeiro para o segundo milênio, das chamadas ordens mendicantes. Entre elas estava o movimento de São Francisco de Assis, que se sentiu interpelado por Deus: “Francisco, vai e reforma a minha Igreja”. Mas, a Igreja não só não se reformou como quase condenou São Francisco.
No século XVI, surgiu outra forte onda de reivindicação por reformas na Igreja. O movimento mais conhecido foi o de Martinho Lutero (1483-1546), que culminou com a publicação de suas 95 teses em 1517 e sua excomunhão em 1521. Em lugar de fazer reformas, a Igreja convocou o Concílio de Trento e fez uma contra-Reforma, marcada pelo combate aos protestantes e defesa de uma doutrina católica, em muitos aspectos esclerosada e caduca. A missa tridentina é um exemplo. Outro é o Catecismo de Trento.
Na primeira metade do século XX, surgiu outra leva de movimentos, clamando por reformas e que se constituiriam em precursores do Concílio Vaticano II. Dentre os movimentos mais organizados e conhecidos estavam: o movimento litúrgico, o movimento bíblico, o movimento teológico, o movimento ecumênico, o movimento catequético, o movimento dos padres operários, o movimento leigo, etc. Por incrível que pareça, em 1950, quase todos estes movimentos e seus principais representantes foram condenados pelo Papa Pio XII. Haviam passado já mil e duzentos anos de pedido de reformas e pouco ou quase nada havia sido feito.
Seria preciso esperar pela figura providencial do Papa João XXIII, um homem sensível às reivindicações por reformas e sintonizado com as exigências dos novos tempos. Para surpresa, sobretudo, da Cúria romana, João XXIII não só reabilitou todos os movimentos condenados, bem como seus expoentes, como convocou um concílio para fazer profundas reformas na Igreja. O Vaticano II seria aberto por ele em 1962 e encerrado pelo Papa Paulo VI em 1965. Finalmente, o desejo alimentado de longa data - de “volta às fontes” bíblicas e patrísticas -, estava sendo contemplado.
Da era constantiniana ao mundo moderno
Outra grande mudança do Vaticano II em relação ao contexto da Igreja, se deu no campo social: a passagem da cristandade à modernidade, da mentalidade medieval ao mundo moderno. O projeto civilizacional moderno, que havia deixado para trás a cristandade medieval, tinha irrompido no início do século XVI. Muitos de seus valores já estavam presentes no movimento de Lutero, tal como atesta Erasmo de Roterdam. Mas, da mesma forma como a Igreja havia excomungado a reforma protestante, também excomungou em bloco a modernidade. Exemplos desta postura são as encíclicas de Pio X – Pascendi Dominici Gregis – de 1907; de Pio IX – Quanta Cura – acompanhada do – Syllabus – de 1864; e a encíclica de Pio XII – Humani generis – de 1950.
Caberia também ao Papa João XXIII, abrir a Igreja para o mundo moderno. Segundo ele, era hora, e tardia, de “abrir portas e janelas da Igreja, para deixar entrar o ar fresco”, de um mundo frente ao qual ela tinha se enclausurado em seu castelo e suspendido as pontes elevadiças.
Nesta perspectiva, João XXIII convocou o Concílio e conclamou a Igreja a acolher os novos “sinais dos tempos”. É famosa sua frase pronunciada no discurso de abertura do Concílio:
“Em nosso tempo, abundam profetas de calamidades, para os quais não há nada de bom no mundo de hoje; no fundo, eles não aceitam a história; eles não assumem a radical ambiguidade da história”.
Como afirma o teólogo e cardeal Walter Kasper, “as grandes conquistas da humanidade, nos últimos séculos, se deram fora da Igreja, contra a Igreja, mas fundadas em valores evangélicos”. João XXIII tinha razão, havia chegado a hora de fazer um aggiornamento (atualização) da Igreja, de superar a “era constantiana”, inaugurada pelo imperador Constantino (272-337), ainda no século IV, com o Edito de Milão, do ano 313.
Imagem: http://revista.olutador.org.br/da-cristandade-a-modernidade/
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