A complexidade do cristianismo

21 de Setiembre de 2024

[Por: Eduardo Hoornaert]




Passando um olhar panorâmico sobre a história do cristianismo, descobrimos que dois fatores, vindos de fora, o complexificam e dificultam descobrir nele a herança de Jesus de modo claro e inequívoco: a chamada ‘leitura grega’, que desde o século III dC influencia o movimento de Jesus, e o ‘fator iraniano’ (ou ‘zoroastra’), que, desde o século VI aC exerce influência sobre o judaísmo e, indiretamente, o cristianismo, por meio da própria cosmovisão de Jesus. 

 

Vale a pena se aprofundar, mesmo em rápidas pinceladas (como aqui), no tema da complexidade do cristianismo, pois ela dificulta e, em certos casos, impede uma visão clara das proposições de Jesus.

 

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A leitura grega

 

As sensacionais conquistas militares de Alexandre o Grande, da Macedônia, no Médio Oriente, no século III aC, fazem com que a cultura helênica se espalhe por grandes extensões de terras e culturas muito diversas e atinge cidades importantes da época, como Antioquia na Síria, Alexandria no Egito e mesmo a longínqua Roma, que desponta como centro virtual de um grande Império. Um sinal muito conhecido dessa avassaladora influência está no fato que os evangelhos, embora descrevam um movimento surgido numa cultura semita, estão redigidos em grego.

 

É nesse contexto que o neo-platonismo, uma das mais significantes ‘ondas’ desse tsunami cultural, inunda o jovem movimento cristão, como descrevo em poucas palavras. 

 

Quando, no ano 244 dC, o filósofo alexandrino Plotino de Licópolis (203-269) aparece em Roma, na época centro de um Império em rápido crescimento, e inaugura ali uma escola de filosofia neo-platônica para jovens da elite intelectual romana, ele alcança em poucos anos um renome extraordinário. Com ele penetra, no âmbito da intelligentia do Império Romano, de modo convincente, um modo grego de se entender o homem e a história, especificamente uma interpretação platônica do ser humano e do sentido de sua existência. Essa filosofia, na realidade uma arte de viver, não deixa de penetrar no cristianismo letrado e intelectualizado da época, notadamente por meio dos chamados ‘Padres da Igreja’, que são os intelectuais cristãos do primeiro milênio do cristianismo. Através de seus numerosos escritos, os Padres da Igreja tentam fazer uma síntese entre o pensamento platônico e a visão evangélica do mundo. Com eles, o platonismo se ‘cristianiza’, ao mesmo tempo em que o cristianismo se ‘platoniza’.

 

As ideias-mestres do platonismo são conhecidas: abaixo do mundo divino, não atingido pelo mal, existe a matéria, onde a luz divina só penetra em forma de sombra (veja o ‘mito da caverna’, de Platão). A matéria é o último reduto das trevas. O corpo humano, morada da alma na matéria, é um espaço ambíguo: ele pode se deixar seduzir pelas formas vãs da matéria, ou se fascinar pela luz imaterial. O corpo é prisão e sepulcro, mas é capaz de tornar-se trampolim para a luz. Precisa a alma tomar distância diante dos impulsos do corpo, por meio do amor pelas realidades espirituais, ou melhor, da purificação do amor. O homem precisa partir do mundo material e se encaminhar para o que é espiritual. Precisa a alma arrancar tudo de si para amar o que é invisível, fechar os olhos diante da materialidade e esperar o Deus que vem, assim como, antes da aurora, nossos olhos esperam a chegada da luz do sol. Quando o sol chega, ele logo toma conta de tudo. A luz espiritual dissipa as trevas da matéria.

 

A maioria dos Padres da Igreja julga que o encontro entre neo-platonismo e cristianismo leva a um enriquecimento da mensagem de Jesus. Só alguns deles, como Basílio de Cesareia (330-379), percebem que, no processo da espiritualização, a perspectiva social, tão presente nos evangelhos, corre o perigo de desvanecer e que, por conseguinte, não se pode falar em ‘síntese’ entre cristianismo e neo-platonismo, já que os elementos da ‘fusão’ são heterogêneos. Seria antes um ‘amálgama’, um hibridismo, uma junção de elementos heterogêneos. Mas essa crítica não prevalece. Vence a ideia que o drama da vida cristã se processa entre a alma e Deus. Os impulsos do corpo têm de ser controlados e possivelmente eliminados, enquanto o ápice da experiência cristã passa a ser a êxtase, a contemplação de Deus. Pois, impregnado de um senso religioso agudo e místico, o neoplatonismo faz com que muitos confundam as coisas e não consigam mais distinguir com clareza a diferença entre ensinamentos de Jesus e ensinamentos de Platão.

 

Há de se ressaltar aqui que a interpenetração entre cristianismo e neoplatonismo se processa de forma lenta, quase imperceptível, e nem sempre aparece com clareza no nível dos textos. Nem sempre é fácil saber se tal Padre da Igreja é um pensador cristão ou um neoplatônico que trabalha com imagens e símbolos cristãos.

 

Esse é o caso de Agostinho de Hipona (354-430). Ele faz parte de um grupo de amigos não cristãos, da África do Norte, que viajam de Cartago a Roma e depois a Milão, na companhia de Mônica, mãe de Agostinho, que é cristã. O grupo procura emprego na Itália, aos poucos renuncia a uma vida de prazeres e passa a procurar a sabedoria. É um grupo seleto, que cultiva altos ideais de vida, tem grandes intuições, formula excelentes orientações morais e segue um elevado modo de viver. Depois de tentar diversas filosofias de vida, o grupo entra em contato com a espiritualidade neoplatônica e, quase ao mesmo tempo, ao chegar a Milão, se impressiona com Ambrósio, bispo cristão, grande orador e figura de elevada estima moral. O grupo de amigos, então, se estabelece em uma propriedade rural num vilarejo nos arredores da cidade de Milão, chamado Cassiciacum. Ali, todos leem e trocam opiniões. São idealistas em busca de uma alma espiritual, que já deixaram para trás os prazeres da carne pecaminosa.

 

A situação dos escravos, em seu redor, não retém a atenção do grupo. Num trecho das Confissões (7, 8) de Agostinho, se evidencia que, para ele, a escravidão é algo normal, faz parte da vida. Enfim, o modo de vida do grupo em Cassiciacum facilita a aproximação entre cristianismo e neoplatonismo, mas dificulta o senso evangélico. Em suas Confissões, Agostinho afirma que a sabedoria neoplatônica combina bem com a sabedoria bíblica, como deixa claro em dois trechos daquele livro: Se eu persistisse no sentimento salutar que deles (dos livros dos platônicos) tenho haurido, julgaria que, se alguém aprendesse só com esses livros (deixando de lado os livros bíblicos), também deles poderia alcançar o mesmo afeto espiritual (Confissões, 7, 26). Notei que tudo de verdadeiro que li nos livros dos platônicos se encontrava neles (nos livros bíblicos) (Confissões, 7, 27). Agostinho só enxerga originalidade no cristianismo em temas morais: ascese, obediência, humildade, controle do corpo, procura da vida perfeita, introspeção, organização da Igreja, patriarcalismo e, principalmente, a convicção inabalável de andar no caminho certo (dogmatismo). Nada transparece, nas Confissões, que se refira a um Deus que opta pelos sofredores, pelos escravos.

 

Após Agostinho ser batizado por Ambrósio, o grupo volta à África do Norte, onde o convertido vive alguns anos numa propriedade da família em Tagaste. Ele, finalmente, transforma essa residência numa ermida, onde - na companhia de alguns amigos igualmente convertidos ao cristianismo - vive uma vida monacal, enquanto é bispo da cidade.

 

Uma linda trajetória de vida, mas, sinceramente, há de se questionar: Agostinho não será um idealista neoplatônico que trabalha com imagens e símbolos cristãos? Em outras palavras: a ‘leitura grega’ da mensagem cristã combina com a genuína tradição de Jesus?  

 

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O fator iraniano

 

No século VI aC surge, em terras do antigo Irã, uma poderosa onda civilizatória, que já atravessou dois e meio milhares de anos e hoje não demonstra sinais de enfraquecimento. A tradição atribui a origem dessa ‚onda‘ a Zaratustra, um sábio iraniano, que  viveu entre 628 e 551 aC e conseguiu despertar as pessoas para uma ética de responsabilidade pessoal e de esperança. Trata-se de uma novidade no panorama cultural e moral daqueles tempos remotos. Com Zaratustra, aparecem narrativas antes desconhecidas no espaço pan-mesopotâmico, com irradiações para culturas vizinhas (como a judaica, por exemplo). Mudam-se as relações entre seres divinos e humanos, indivíduos e estados, vivos e mortos.

 

Não se sabe como se deu concretamente essa guinada. Só sabemos que Zaratustra inaugurou uma ética de decisão, a superar as religiosidades tradicionais baseadas na fatalidade.  Antes de Zaratustra, o cosmos era entendido como uma web de múltiplas relações, que têm que ser harmoniosas para que tudo funcione bem. A arte da vida costumava importar em acomodação com o ‚destino‘ (marcado pelos deuses), em glorifacação dos poderosos do momento, ou ainda em simples gestos de etiqueta. O modelo era a sociedade divina e o mapeamento da ordem era feito pela observação das estrelas e o movimento dos planetas (da lua, por exemplo). Daí a importância da astrologia e dos oráculos, ou seja, de sinais que provêm de um mundo de fora. Os ritmos inalteráveis do macrocosmo marcavam os destinos do microcosmo, de que fazemos parte, e lhe ditavam regras e harmonias. Zaratustra rompe com essa visão e interpreta a vida humana a partir do princípio da responsabilidade pessoal.

 

Acontece que, no seguimento das lições de Zaratustra, com o tempo aparecem narrativas de oposição radical entre Deus e Satanás, o Bem e o Mal, a Santidade e o Pecado, Céu e Inferno, Salvação e Condenação. São essas narrativas que resistem ao tempo e chegam até nós.

 

O Império persa, que posteriormente se instala no Irã, respeita os ensinamentos de Zaratustra, de modo que eles continuam orientando as populações da região até os tempos de Maomé, em 636 dC. Mas é a helenização que difunde as intuições zoroastras em amplas ambientes. Como escrevi acima, o líder macedônio Alexandre Magno, nos anos 330 aC, rasga horizontes e penetra no mundo pan-mesopotâmico, de modo que a região mediterrânea se defronta, de repente, com heranças iranianas. Aparecem, por todo canto, éticas de responsabilidade, enquanto atitudes de etiqueta religiosa, da conformidade e da harmonia entram em declínio. Sob a influência, direta ou indireta, das tradições oriundas em Zaratustra, as novas religiões helenísticas não falam mais em conformidade a desígnios divinos, mas em libertação do mundo de Satanás. A religião vira um campo de batalha entre o bem e o mal. A ordem do mundo, tradicionalmente exemplificado pelas sete esferas planetárias, cede diante da ascensão a um mundo além das ‘esferas’, o mundo da liberdade e da responsabilidade.

 

O zoroastrismo é provavelmente a religião que, até hoje, exerceu maior influência sobre a história humana, no Ocidente e mesmo em importantes partes além. Ela influenciou o judaísmo, o cristianismo, o islamismo, o neoplatonismo, o estoicismo e o pitagorismo. Até o monaquismo cristão ostenta marcas zoroastras. Imagens como Céu e Inferno, Deus e Satanás, Salvação e Condenação, Santidade e Pecado se propagam universalmente.

Foi a leitura da frase Vi  Satanás cair que nem um raio (Lc 10, 18), atribuida a Jesus nos evangelhos de Mateus e Lucas, que me fez suspeitar, em suas falas, a influência de narrativas de teor zoroastra. Percebi que Jesus carrega consigo imagens e ideias do antigo mundo iraniano. Penso que essa influência seja resultado do ensino que ele recebeu na sinagoga ao longo da infância e adolescência. Pois o ensino na sinagoga, embora sempre se tenha apresentado genuinamente judaico, não deixou de estar impregnado de imagens provenientes de antigas religiões do espaço mesopotâmico. Hoje, por exemplo, os biblistas concordam em dizer que os nove primeiros capítulos da Bíblia foram inspirados por imagens provenientes de antigas culturas mesopotâmicas, iranianas e egípcias.

 

O jovem galileu Jesus, ao frequentar a sinagoga nos sábados, é atingido pela onda iraniana. O rabi lhe explica que, já no jardim do Éden, Satanás aparece na figura de uma Serpente Tentadora a instigar o primeiro homem a pecar (Gênesis 3 e Apocalipse, 12, 9 e 20, 2). E que o Rei Davi é incitado a pecar por Satanás (1 Crônicas 21, 1). O ‘Senhor Satanás’, o Grande Opositor a Ihwh, o Maioral dos demônios, o Chefe dos anjos caídos (Zacarias 3, 2), o Sedutor e Acusador do povo de Deus, o Intruso no tribunal celestial (Livro de Jó), o Falsário e Enganador (Jó 1-2), passa a ocupar um espaço importante no imaginário judaico e, consequentemente, de Jesus. O rabi, talvez sem tomar consciência do fato, trabalha com imagens iranianas. Ele não entra em detalhes sobre a origem de Satanás, só comenta que ele caiu de sua posição original de Anjo devido a seu orgulho (1 Timóteo 3, 6), levando consigo outros anjos caídos, uma narrativa de teor zoroastra.

 

Essas tradicionais narrativas, captadas pelo judaísmo, podem ser apresentadas do seguinte modo: no Princípio, Deus cria um mundo bom. Mas, pouco tempo depois da criação de Adão, acontece uma rebelião entre os anjos, liderado por Satanás. Miguel derrota Satanás e o joga fora do céu. Por vingança, esse seduz Adão no paraíso terrestre, sob o disfarce de uma serpente (Gen. 3). Adão peca e, com isso, a morte, as enfermidades, um sem-número de desgraças vêm se abater sobre a humanidade. Anjos rebelados namoram filhas dos homens, são igualmente expulsos do céu e relegados ao mundo subterrâneo, donde costumam sair para provocar danos aos humanos. Enfim, por causa da atuação constante de Satanás e seus seguidores, o mundo cai nas redes do pecado. Não há como escapar.

 

O Apocalipse, do final do século I, conta a mesma história, sendo que introduz a imagem do Dragão. Conta que, na guerra travada no céu, o Arcanjo Miguel e seus adjuvantes fizeram a guerra contra o Dragão. O Dragão e seus comparsas reagiram, mas não tiveram força e caíram na terra. O Dragão, o grande, a antiga Serpente, aquele que se chama Divisor e Adversário, aquele que engana o mundo inteiro, esse Dragão caiu na terra. Foi jogado a terra com seus comparsas (Apoc. 12, vv. 7-10). Aí, após mil anos de prisão, saiu de novo para enganar as nações por meio de mentiras. Hoje, ele age nos quatro cantos da terra e consegue reunir nações tão numerosas como os grãos de areia na praia, do mesmo modo que fizeram Gog e Magog, quando fizeram guerra contra Israel (Apoc. 20, vv. 7-8).

 

Assim se compreende que a imagem de uma oposição radical entre Deus e Satanás seja recorrente nas falas de Jesus. Para ele, como para os primeiros discípulos, Satã (que originalmente significa ‘Adversário’) é o grande símbolo do mal, como comprovam nomes com Inimigo, Tentador, Maligno, Príncipe deste mundo, Sopro imundo, Demônio, Beelzebu, Sedutor, Provocador, Enganador, Mentiroso, Separador (o termo grego diabolos significa: ‘aquele que separa’), Dragão (no Apocalipse), Serpente (no Gênesis). Embora não sejam frequentes os textos dos evangelhos que tratam de um confronto direto entre Jesus e Satanás (só Mt 4, 1-11 [tentação no deserto], Mc 3, 22 [o poder que Jesus tem de expulsar demônios], e Lc 10, 18 [‘vi Satanás cair como um raio]), o que fica claro, nas narrativas evangélicas, é que Jesus põe fim ao reino de Satanás sobre o mundo. O Evangelho de Marcos, por exemplo, estrutura toda a vida pública de Jesus em torno de uma luta incessante entre Jesus e Satanás. Nele, o Reino de Deus aparece como uma vitória contra o Reino do Adversário (Mc 3, 23-27).

 

Nossa dificuldade em entender a tradição zoroastra provém basicamente do fato que os estudiosos costumam prestar pouca atenção à porosidade que caracteriza relações interculturais. O judaísmo, na época de Jesus, está impregnado de imagens e narrativas oriundas da Mesopotâmia e do antigo Irã. E as lições, que Jesus recebe na sinagoga, combinam bem com recomendações de Zaratustra. Falar da influência da ‘tradição zoroastra’ sobre Jesus não é, pois, algo estranho, mas decorre de um enfoque de sua figura na linha de uma maior definição histórica. 

 

Hoje constatamos que numerosas imagens veiculadas no seio do cristianismo, com forte impacto nas classes populares, tratam da oposição entre luz e trevas, verdade e mentira, anjo e demônio, céu e inferno, salvação e condenação. Para o comum do povo cristão, Satanás continua sendo o grande adversário, o diabo, o demônio, o dragão da maldade, o Lucifer. O maior drama do mundo é aquele que se trava entre Deus e Satanás. Aparece, com a força de séculos de transmisssão, a figura de Jesus Salvador (Redentor). A retórica do inferno, por exemplo, apesar de atualmente desaparecer no discurso da instituição cristã, continua repercutindo poderosamente no povo crente.

 

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Uma intuição de Karl Jaspers

 

O filósofo alemão Karl Jaspers publicou, em 1948, um texto baseado numa intuição, que ele formulou do seguinte modo: num período de aproximadamente seiscentos anos, entre os séculos VI aC até o início da era cristã, teriam surgido, em distintos pontos do planeta, percepções e `artes de vida‘ de teor revolucionário. Ele chamou esse período de ´Era Axial‘ e  pensou detectar sinais de tal `Era‘ em Israel (com profetas como Isaías), Grécia (com Sócrates e Platão), China (com Confúcio), Índia (com Buda), Irã (com Zaratusta) e Galileia (com Jesus).

 

Estamos diante de uma grande intuição, que no fim dos anos 1940 teve pouca repercussão, mas hoje, decorridos quase oitenta anos, nos parece ajudar a situar o cristianismo na amplitude da história da humanidade. O cristianismo seria participante daquele mega-movimento de mudança, em termos de mentalidade e ação, que a escritora inglesa Karen Armstrong, num `bestseller‘ de 2006, apresentou sob o título The Great Transformation.  Na mesma linha, D. MacCulloch, professor de história eclesial na Universidade de Oxford, na Inglaterra, publicou recentemente um livro sob o seguinte título: Christianity: the First Three Tousand Years (New York, Penguin, 2009: ´Cristianismo: os Primeiros Três Mil Anos‘). Estamos acostumados a considerar que o cristianismo tem dois mil anos, mas MacCulloch alarga os horizontes, de modo que `artes de vida‘  gregas, mesopotâmicas e iranianas, anteriores ao surgimento do movimento de Jesus,  entrem no campo de visão. Elas continuam vivas no cristianismo que hoje professamos. Com isso, MacCulloch questiona  a ideia de Jesus como única fonte do cristianismo histórico.

 

Há detalhes na liturgia católica, que costumam passar despercebidos, e que apontam para influências além de Jesus. Donde vem a mitra dos bispos? Sinal quase despercebido de uma herança muito antiga, a mitra era usada, mais de dois mil e quinhentos anos atrás, por sacerdotes de Mitra, um dos principais deuses do Irã antigo. Em textos antiquíssimos, de milênios atrás, como o Avesta iraniano e o Rig Veda hindu, Mitra aparece. No tempo do Império Romano, ele é venerado como protetor das legiões. E, a partir do século IV, aparece na cabeça de bispos católicos. Ficamos pensando: ao lado de Mitra dos antigos iranianos, não existe o Tao dos chineses, o Bodhisatta dos budistas tibetanos, o Brahma dos indianos, o Allah dos árabes, a ‘Caravana do Amor’ do andaluz Ibn Arabi e, nos anos da luta pela independência da Índia (1946), o Vishnu de Gandhi, que lhe inspira a Satyagraha? A seu modo, a mitra episcopal mostra que, no cenário mundial, o iraniano Zaratustra, o chinês Confúcio, o indiano Buda e o árabe Maomé figuram ao lado do judeu Jesus.

 

Essa vocação universal da ideia cristã foi mal percebida e compreendida nas primeiras décadas do movimento de Jesus (entre os anos 30 e 50). Os primeiros discípulos mal perceberam que, pensando bem, o universalismo pertence ao âmago da mensagem de Jesus de Nazaré. Aqui, há de se considerar que, nas palavras e nos gestos de Jesus, o universalismo entra como vislumbre, não impregna por inteiro seu modo de falar e atuar (veja o episódio com a mulher cananeia). Jesus permanece fundamentalmente judeu, pensa em categorias judaicas e segue tradições judaicas. Então, é de se entender que os discípulos da primeira geração pensem que a mensagem de Jesus se restrinja ao mundo judaico e não compreendam como um não judeu possa participar do movimento.  É por meio da intuição de um ‘outsider’, o fariseu Paulo de Tarso, que a afirmação do valor universal da mensagem de Jesus passa a se espalhar pelo movimento, aproximadamente vinte anos após a morte de Jesus:

 

Não há judeu nem grego

Não há servo nem livre

Não há homem nem mulher

Vocês todos são um em Jesus o Ungido (Gl 3, 28).

 

Foi preciso que o autor ateu Alain Badiou, em 1997, chamasse a atenção para o fato que o universalismo é a verdadeira dimensão da mensagem de Jesus (Badiou, A, Saint Paul, La Fondation de l’Universalisme, Presses Universitaires de France, Paris, 1997), para que essa ideia renascesse na teologia atual. Por seu modo retórico de escrever, que lhe é próprio, Paulo dá a impressão de estar escrevendo para todos os habitantes de Corinto, Roma ou Tessalônica. Mais: Paulo parece escrever para os habitantes do mundo inteiro. A ideia universalista impregna seu modo de escrever. Na realidade, suas Cartas se dirigem a grupinhos de, no máximo, umas dezenas de pessoas. Mas Paulo está imbuído da ideia do universalismo da mensagem de Jesus. Por isso, são seus textos que conferem forma, expressão e ampla divulgação à ideia universalista e, dessa forma, constituem a primeira literatura universalista de que a humanidade tem conhecimento. Pela primeira vez, na literatura mundial, alguém escreve explicitamente que o universalismo é a verdadeira dimensão da história humana, sua verdadeira vocação.

 

Hoje, percebemos com crescente clareza: se o judeu não der a mão ao grego, o livre ao escravo, o homem à mulher, não haverá paz neste mundo. Eis a inspiração básica de não poucos entre os teólogos de hoje, como Dietrich Bonhoeffer, que fala em viver sem Deus em Deus, ou Roger Lenaers, que aborda o tema do ser cristão moderno, José María Vigil, quando instiga a vivenciar o pluralismo religioso, José María Castillo, quando valoriza a historicidade de Jesus, Shelby Spong, quando ensina a ler os evangelhos com olhos novos, Joseph Moingt, quando escreve em viver segundo o espírito do cristianismo, José Comblin, quando diz que evangelho não é religião. E tantos outros.

 

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Para muitos cristãos, o modo em que o cristianismo é vivido hoje parece decorrer unicamente do evangelho de Jesus. Eles não costumam perceber, no cristianismo, influências vindas de fora. Nunca ouviram falar que o zoroastrismo ou o neoplatonismo possam ter algo a ver com o modo em que eles praticam a religião cristã. Nunca se fizeram perguntas como ‘no cristianismo de minha fé, o que é de Platão, o que é de Zaratustra, o que provém de Jesus?’ Isso se entende, pois as imbricações do cristianismo, tanto com o zoroastrismo quanto com o neoplatonismo, são sedimentadas por um passado de muitos séculos e estão integradas no modo em que costumamos entender o cristianismo.

 

Mesmo assim, é importante distinguir. Sendo o cristianismo uma complexa formação de elementos diversos, é bom recorrer ao método tomista de distinção, diferenciação e depuração, para conseguir enxergar as diferenças. Aqui podemos parafrasear um dito de Jesus e dizer que precisa ‘dar a Platão o que é de Platão, a Zaratustra o que é de Zaratustra e a Jesus o que é de Jesus’. Pois aqui, como já dizia Basílio de Cesareia, não se trata de ‘sínteses’ (entre a leitura grega, o fator iraniano e o evangelho de Jesus), mas de ‘amálgamas’, ou seja, composições de elementos heterogêneos. Platão, embora apresente uma ‘arte de viver’ de grande valor, não contempla as relações sociais em que os seres humanos estão envolvidos e que constituem uma das principais ideias-mestre de Jesus. Tarefa ainda mais delicada consiste em destrinchar o fator iraniano, tão presente na vivência do cristianismo hoje, pois está na origem de imagens universalmente difundidas como a de ‘Jesus Salvador’, do ‘último juízo’ e da ‘eterna condenação’, que destoam da mensagem de Jesus sobre ‘Deus Pai’.

 

Termino aqui, caro leitor, querida leitora, e espero que meu texto lhe seja de algum proveito.

 

Imagem: https://monsieurdevillefort.wordpress.com/2016/03/25/el-complejo-y-diverso-mundo-del-cristianismo-primitivo-en-dos-lecturas/

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