As mudanças de rumo na vida de Helder Camara

29 de Agosto de 2024

[Por: Eduardo Hoornaert]




Ao longo de sua vida, Helder Camara passa por três importantes mudanças de rumo, que descrevo aqui em breves palavras. Todas têm a ver com o tema Liberdade.

 

1. Quando, em 1931, aos 22 anos, Helder sai do Seminário de Fortaleza, ordenado sacerdote, ele mergulha imediatamente na vida política da cidade. Segue basicamente o catolicismo autoritário da época e se inquieta com o despontar de um pensamento ‘comunista’ em determinados grupos. Não hesita em escrever, em jornais da época, que os regimes de Hitler (na Alemanha) e Mussolini (na Itália) são modelos seguros a serem seguidos, ele veste a camisa dos integralistas de Plínio Salgado e anda com dois jovens militares pelos bairros da cidade para premunir o povo contra  o ‘perigo vermelho’.

 

Mas ele não é bem sucedido em sua cidade natal e, em 1936, Helder se transfere para o Rio de Janeiro, onde inicia um lento e doloroso processo de revisão de suas posturas políticas, marcado por leituras individuais, principalmente de autores cristãos franceses, como Jacques Maritain, que lhe abrem a compreensão dos valores da democracia. Ele sente-se ‘libertado’, graças a uma incomum tenacidade intelectual e por sua humildade em se dispor a rever posicionamentos. E, com o falecimento do Cardeal Leme em 1942 e o final da segunda guerra mundial em 1945, abre-se um novo caminho em sua vida, um caminho de libertação. Eis a primeira mudança de rumo na vida de Helder.

 

2. Anos depois, em 1955, já como bispo auxiliar de Rio de Janeiro, o doravante chamado ‘Dom’ Helder recebe a incumbência de ajudar a organizar o 36º Congresso Eucarístico Internacional, a ser sediado na Capital do Brasil. Esse congresso vira um sucesso enorme e põe o Brasil, pela primeira vez, em cenário mundial. Dom Helder se revela excelente organizador, empolgante orador, grande comunicador. Querido e admirado, ele passa por bons momentos.

 

Mas acontece, no final daquele enorme sucesso, que o evangelho irrompe em sua vida. Dom Helder ‘descobre’ a pobreza reinante na cidade. No conto aqui os detalhes (que são interessantes e que você encontra em meu livro Helder Câmara, quando a vida se faz Dom, capítulo 4). Helder opta pelos pobres e isso muda tudo. Estava a caminho de se tornar um eclesiástico de grande sucesso e, de repente, muda o rumo de sua vida. Ele não é mais o mesmo. Ganha em termos de liberdade, mas, de outro lado, seu superior, o Cardeal Jaime, começa a desconfiar de seu auxiliar e o governador Carlos Lacerda entra numa relação tensa com ele. Enfim, seus relacionamentos mudam sensivelmente.

 

Aí se inicia o período mais conhecido da vida de Helder, marcado por uma desejável liberdade em tempos difíceis. Em 1946, ele tinha unificado a Ação Católica em nível nacional, em 1952 consegue o mesmo com o episcopado, com a criação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e em 1955 está na origem do ‘Consejo Episcopal Latino-Americano’ (CELAM). Grandes realizações em cima do princípio democrático. Entre 1962 e 1965, ele participa do Concílio Vaticano II, no final do qual articula o Pacto das Catacumbas. Seu renome internacional cresce exponencialmente a partir da década de 1960, com suas bem-sucedidas viagens internacionais, que fazem com que seu nome seja conhecido pelo mundo católico inteiro (o que suscita sentimentos de inveja no Vaticano). Em 1964, é nomeado arcebispo de Recife, lida com sucesso com o governo militar, sofre o assassinato de um de seus padres em 1969 e em 1970 pronuncia em Paris, diante um público de dez mil pessoas, um discurso em que acusa o governo brasileiro de cumplicidade em assassinatos e torturas de oponentes.     

 

3. Com essas realizações, Helder adquire a imagem de ‘profeta’. Mas ele não para.  A maior de suas contribuições está por vir. Nos primeiros dias do ano 1971 aparecem, nos cabeçalhos das Cartas Circulares que ele costuma mandar cada dia a grupos de mulheres que, no Rio e em Recife, acompanham suas ações e reflexões, e que representam frequentemente meditações feitas ao longo de suas vigílias noturnas, os dizeres Minorias Abraâmicas (Conto detalhes no capítulo 11 do livro acima assinalado). O que significam essas palavras?  Significam que Helder, doravante, navega para novos horizontes, para além do temário democrático. Ele toma tal atitude por ter experimentado dolorosamente que a democracia só funciona por meio de politicagens e arranjos, que acabam tiram muito de seus intentos originais. Pois a democracia, concretamente, é feita de arranjos e só funciona quando larga propostas capazes de desafiar efetiva e diretamente o ‘sistema’. Como dizia Churchill: a democracia é um sistema ruim, mas não existe melhor.

 

A experiência de longos anos ensinou a Helder que pequenos grupos, livremente reunidos, são capazes de realizar o que a ‘democracia’ não consegue. Ele conhece grupos que agem em favor de despossuídos, mulheres e crianças desamparadas, indígenas e quilombolas, gente sem terra ou sem casa, etc. Aliás, essa é a ideia de Jesus, quando compara o Reino de Deus a uma semente no chão, um fermento na massa, um sal na comida, uma luz na escuridão.

 

Para caracterizar sua intuição, Helder cava fundo na tradição bíblica e desenterra a figura de Abraão, o homem que se desinstala para ir livremente para onde Deus o chama.

 

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Considero a proposta de formar ‘minorias abraâmicas’ a principal contribuição de Helder Câmara em debates e reflexões cristãs, hoje, vinte e cinco anos após sua morte. Helder continua presente. Termino com uma sugestão: a de ler e reler suas Cartas Circulares, pois elas inspiraram suas ações e contêm a chave de compreensão de suas iniciativas.

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