Benedito Ferraro, uma vida a serviço das comunidades e da sociedade

16 de Agosto de 2021

[Por: José Oscar Beozzo]




É alegria muito grande celebrar a riqueza, a beleza e a fecundidade humana, pastoral, intelectual, política e espiritual da vida do nosso companheiro, irmão e amigo, Pe. Benedito Ferraro, nesses seus 50 anos de ministério presbiteral. 

 

Depois de tantas jornadas vividas juntos, Brasil afora e mesmo no exterior, tivemos, desde 2009, o privilégio de tê-lo à frente da diretoria do CESEEP, como seu presidente. 

 

Destaco alguns aspectos que sempre me tocaram na sua vida e no seu testemunho.

 

Um olhar a partir da periferia

 

O chão, a partir do qual, Ferraro sempre mirou para a vasta região metropolitana de Campinas foi o do multiplicar-se de suas periferias bem abandonadas e esquecidas, mas cheias de vida, conflitos e sonhos. 

 

Com os dois pés plantados naquela realidade, analisou e criticou o sistema, o capitalismo cruel, excludente, concentrador dos serviços e riquezas nas mãos de poucos. 

 

Não só analisou, mas empenhou-se sempre para, junto com seus moradores e moradoras, seus movimentos sociais e políticos, transformar essa situação no conjunto da cidade, num esforço pioneiro de responder pastoralmente ao clamor abafado desses bairros afastados. Esse foi um trabalho levado avante pela equipe de pastoral da periferia, articulada com a coordenação e as lideranças de cada comunidade, numa grande rede solidária e amiúde profética.

 

Trabalhadores e trabalhadoras, companheiros e parceiros de sonhos e lutas

 

Ferraro ancorou no mundo concreto do trabalho todo seu modo de lidar com os conflitos e contradições da realidade social e política. Encontrou ali a chave principal para interpretar e transformar a realidade, apoiando-se no dinamismo da Pastoral Operária, das comunidades de base, dos sindicatos e do partido político, como ferramentas do seu pensar e atuar. 

 

Nesse sentido, operou muito cedo o deslocamento tão crucial daquele modo manco de se pensar a doutrina social da Igreja, enredada no esforço para colocar limites à propriedade e de proclamar sua função social expressa, nos seus melhores momentos, por aquela afirmação assumida por Puebla: “Sobre toda propriedade pesa uma hipoteca social”. A propriedade só é legitima quando serve ao trabalho e aos seres humanos que o executam.

 

Ferraro deslocou-se desde o início de sua militância do polo da propriedade para o polo do trabalho, com rosto concreto dos trabalhadores e trabalhadoras, das muitas Marias e Josés, que labutam pela própria sobrevivência e de seus familiares ou que se desesperam, quando perdem o emprego e não acham logo uma outra ocupação. 

 

Não esperou a “conversão” operada por João Paulo II, aos 90 anos da Rerum Novarum, quando proclamou, na sua Encíclica Laborem Exercens de 1981, que o trabalho era a chave essencial da questão social. 

 

O Papa, depois de dizer que não se propunha apenas a revisitar os temas e a doutrina do passado, “para coligir e repetir o que já se encontra contido nos ensinamentos da Igreja, mas sobretudo para pôr em relevo – possivelmente mais do que foi feito até agora – o fato de que o trabalho humano é uma chave, provavelmente a +chave essencial de toda a questão social, se nós procurarmos vê-la verdadeiramente do ponto de vista do bem dos homens” (LE 3). 

 

Por isso, Ferraro não fala tanto de “pobres”, mas sim dos “empobrecidos” pela exploração do seu trabalho ou pela falta de trabalho, pela exclusão e o descarte, transformados que são na massa “sobrante” do sistema. Ficam excluídos do mercado de trabalho e também do consumo, numa sociedade pensada para poucos e não para todos e todas. 

 

Comunidades eclesiais de base, o jeito de toda a Igreja ser

 

Inspirado no caminho aberto pelo Vaticano II, ao definir a Igreja, como povo de Deus, abraçou com entusiasmo a tradução de Medellín para esta realidade na América Latina: povo de Deus, como povo dos empobrecidos, convertidos em sujeitos de sua aventura eclesial pelo batismo, afirmando sua maioridade cristã ao interior das comunidades eclesiais de base. 

 

De forma lapidar, Medellín acolheu e promoveu esta nova forma de toda a Igreja ser. O tema eclesiológico fora tratado no documento 14 de Medellín, Pobreza na Igreja. É retomado no documento de Pastoral de Conjunto, onde os números de 10 a 12 definem a proposta fecunda de uma igreja de pobres, congregada em pequenas comunidades cristãs de base: 

 

“Assim, a comunidade cristã de base é o primeiro e fundamental núcleo eclesial, que deve, em seu próprio nível, responsabilizar-se pela riqueza e expansão da fé, como também pelo culto que é a sua expressão. É ela, portanto a célula inicial de estruturação eclesial e foco de evangelização e atualmente fator primordial de promoção humana e desenvolvimento” (Med. 15, 10). 

 

Seu constante serviço às CEBs, levou-o a assumir, junto com Tereza Cavalcanti, a assessoria à Ampliada Nacional das CEBs, a acompanhar a preparação e realização dos Intereclesiais, a partir de 2.000. Este seu serviço que incluía acudir aos muitos encontros das CEBs pelos 18 regionais da CNBB culminou com sua participação ativa na Articulação continental das CEBs, com a Ir. Socorro do México e lideranças de todo o continente. Ao retornar desses encontros continentais, trazia sempre uma lufada de ar fresco e de renovada esperança na teimosa caminhada das comunidades e na formação de redes de partilha, solidariedade e compromisso. 

 

Em Maria, o Cristo se fez humano; na oficina de José, ele se fez classe

 

 

Jesus de Nazaré e sua prática traduzida em palavras, mas sobretudo em gestos e atitudes, esteve no coração da ação pastoral do Ferraro, mas foi também a principal área de sua docência tanto na PUC de Campinas quanto no Curso de pós-graduação da Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo. Esse ensino acadêmico foi constantemente retroalimentado pelos cursos de formação teológica de agentes de pastoral e lideranças de base no Acre, em Rondônia e agora na Prelazia de São Félix do Araguaia, MT. 

 

Quando o CESEEP delineou, com o Curso de Verão, um programa de quatro anos para oferecer uma sólida formação bíblica, teológica, pastoral e de atuação na sociedade, para dirigentes de comunidades das diversas Igrejas cristãs e de movimentos populares, Ferraro foi convidado, logo no primeiro ano, a ocupar-se da seção teológica, com o tema da Cristologia. 

 

Ele o introduziu num parágrafo programático: “A Cristologia, a partir da América Latina parte da experiência de exploração dos espoliados, do sofrimento dos pobres que “morrem antes do tempo”. Assume-se a contradição fundamental da América Latina que é a opressão-libertação. O pobre é a cruz real. Por isso, “o lugar teológico donde tudo brota é a cruz de Cristo acontecendo na história latino-americana e é a percepção de que a vida e o Espírito só provém da cruz assumida no amor e na luta pela justiça do Reino de Deus” (G. S. Gorgulho, prefácio em Domingos Barbé,  Ed. Paulinas, São Paulo, 1982, p. 6). 

 

Ferraro arremata assim a sua reflexão: “Deste modo, a cristologia não pode ser vista apenas como um encadeamento de afirmações dogmáticas, mas a tentativa de compreender como a história de Jesus penetrou a fé pascal, a vida da Igreja e o hoje de nossa história na América Latina”. 

 

E o Verbo se fez humano e armou sua tenda no meio de nós

 

Nos meses em que pode usufruir de uma bolsa de pesquisa no DEI de San José da Costa Rica, Ferraro dedicou-se a revisitar a grande tradição dos concílios e a debruçar-se sobre a compreensão das comunidades e dos padres da Igreja, sobretudo do Oriente, acerca do mistério do Cristo encarnado. 

 

Preocupava-o as leituras fundamentalistas e os falsos argumentos para se travar, sob diferentes pretextos, a efetiva acolhida no seio da Igreja da radical igualdade de todos os batizados e batizadas, já proclamada por Paulo na carta aos Gálatas: Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus (Gl 3, 28). Chegava-se a usar abusivamente da cristologia, como suporte para essas posições que teimavam a perpetuar divisões e exclusões, sobretudo em relação às mulheres.

 

Estava claro para o Ferraro, que determinadas leituras da escritura e dos concílios não podiam se transformar em pretexto para justificar e, muito menos, sacramentar desigualdades entre os humanos, seja por diferença de cultura e religião (judeu ou grego), seja por divisão de classes (escravo ou livre) e muito menos de gênero (homem e mulher). Essas são realidades a serem transformadas, para que se alcance o propósito de que todos e todas somos um em Cristo.

 

Ferraro foi buscar a exata formulação do Concílio de Calcedônia (451), para descrever o mistério da encarnação. Em momento algum, Calcedônia diz que o Verbo se fez homem, no sentido de masculinidade (“aner” em grego, “vir”, em latim, “varão” em português), mas sim que se fez humano (antropos), o conceito abrangente, que abraça homens e mulheres na sua radical igualdade e dignidade. Calcedônia proclama “... kai kuriou tèn èvanthropesin” e que o latim traduz por “inhumanationem”, ou seja, que o Senhor se fez humano no meio de nós, que tomou a nossa carne, na sua fragilidade e incarnou-se na nossa condição de humanos, tanto de homens, quanto de mulheres (Profissão de fé de Calcedônia, no. 30). 

 

Descer da cruz os crucificados de ontem e de hoje

 

O propósito último, porém, e a diuturna preocupação da reflexão, mas sobretudo da prática do Ferraro, foram sempre o de encontrar e estruturar dentro da Igreja e na sociedade os caminhos concretos para se descer da cruz os crucificados de hoje. 

 

Numa formulação para a qual contribuiu Ferraro e outros teólogos, teólogas e bispos, diz o documento de Aparecida acerca dos “crucificados” de hoje: 

 

“[...] Uma globalização sem solidariedade afeta negativamente os setores mais pobres. Já não se trata simplesmente do fenômeno da exploração e opressão, mas de algo novo: a exclusão social. Com ela a pertença à sociedade na qual se vive fica afetada na raiz, pois já não [se] está abaixo, na periferia ou sem poder, mas [se] está fora. Os excluídos não são somente ‘explorados’, mas ‘supérfluos’ e ‘descartáveis’” DAp 65).

 

Agora que o COVID19 se converteu em mortífera pandemia, que o descaso e a criminosa omissão do governo trouxeram de volta um desemprego avassalador e que a fome voltou a rondar os lares de milhões de brasileiros, há uma infinidade de “crucificados e crucificadas”, que esperam da solidariedade, do clamor popular e das Igrejas um decisivo compromisso para mudarem sua sorte e serem descidos da cruz.

 

A fraternura

 

Essa feliz junção das duas palavras, fraternidade e ternura, exprime bem o que pude experimentar da parte do Ferraro, sobretudo quando cai enfermo, em agosto de 2018. 

 

Tinha uma agenda apertada de compromissos, entre os quais o de um retiro, na terceira semana daquele mês, com os integrantes do movimento “Opción por los pobres”, na Argentina. Em que pese o prazo apertado e sua própria agenda congestionada, Ferraro deu um jeito de viajar para animar aquele retiro, no meu lugar. 

 

Com ele também pude aconselhar-me a respeito do CESEEP e de minha própria vida, naquele momento em que sentia que esta se esvaia e que não tinha mais forças para retomar o trabalho.

 

Sou-lhe infinitamente grato pela sua escuta atenta, suas palavras judiciosas e o ânimo que me infundia, por saber que podia contar, de maneira incondicional, com sua amizade, companheirismo e fraternura.

 

Notas

 

 FERRARO, Benedito, Cristologia a partir da América Latina, in BEOZZO, José Oscar (org.), Curso de Verão – Ano I, Coleção Teologia Popular. São Paulo, Ed. Paulinas, 1988, p. 115.

Procesar Pago
Compartir

debugger
0
0

CONTACTO

©2017 Amerindia - Todos los derechos reservados.