Clarice Lispector e a delicadeza de um Deus bruto

04 de Diciembre de 2020

[José Neivaldo de Souza]




Deus, na perspectiva de Clarice, não pode ser pensado, mas sentido ou tocado, assim como Ele nos toca. Ele não é o que pensamos, já que construímos a ideia de perfeição de acordo com as nossas conveniências acerca do bem ou do mal. Assim, uma teologia sistemática e preocupada com a lógica dos dogmas, não tem lugar em sua reflexão. Deus escapa ao pensamento articulado ou ao paraíso inventado. Ele nos provoca a extrapolar o amor porque deseja ser amado, como Ele é, em nossa alma perdida.

 

Toda produção teórica, acerca do Todo poderoso, deve ter na fonte a sensibilidade do toque, o sentimento.  Somos tocados pela falta, pelo desejo de um paraíso perdido, mas também pela dificuldade de lidar com o que há de pior em nós, o nosso próprio inferno. Clarice, em seus escritos, faz vários acenos à sua relação com Deus, muitas vezes amorosa e outras vezes odiosa. O Impossível que nos toca quer ser tocado. Algumas vezes se faz luz na escuridão; outras vezes escuridão na luz. Somos a imagem de um Deus que, não raras vezes, nos arrebata da felicidade e nos derruba no desespero; um Deus que, a um só tempo, é delicado e bruto. Este aceno aparece no conto “Perdoando Deus” na obra: Felicidade Clandestina.  

 

Um Deus delicado. Distraidamente, caminhando pela Avenida Copacabana, olhando os edifícios e contemplando o mar, a protagonista se sente tocada por uma emoção inefável: sentia-se como a mãe de Deus, sem orgulho ou prepotência e com um maternal carinho pela criação. Deus é a terra e o mundo. Ela nunca se sentira assim, tão afetiva e amorosa: “E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre”. A delicadeza sagrada, em forma de sopro, toca o seu rosto e invade o seu interior. Um mundo maravilhoso se descortinara aos seus olhos. Mas... Deus se reduz ao amor de uma mãe ávida por cuidado? Narrando na primeira pessoa, Clarice revela os limites de sua fé.  

 

Um Deus bruto. Não mais que de repente, o Impossível que se deixa amar, se faz odiado na dura realidade da morte. Um rato morto no chão provoca em nossa autora um sentimento de desamor, repulsão. Procurando um nexo entre os dois fatos e, a partir de sua fobia, questiona Deus articulando uma forma de vingança. Mas, como vingar deste Ser que, com um rato esmagado, é capaz de nos esmagar? O que fazer? Arruinar a Sua reputação? A autora cai em si e percebe que o mundo também é um rato morto revelador de nossa fragilidade, de nossas incompreensões que desejam ser sentidas e não calculadas segundo as nossas conveniências. Por que um rato morto não é digno de compaixão? Como ter este carinho maternal pela criação se, como uma mãe que recusa o seu filho, o que traz aborrecimento é rejeitado? No rato morto, através do sentimento de Clarice, projetamos o medo da morte. Deus quer que saibamos dialogar com este defeito ao invés de destruí-lo. Assim entende Clarice: “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”. 

 

Para concluir, o Deus de Clarice é delicadamente brutal. Não é “cumplice” a ponto de nos poupar da morte e nem “rival” a ponto de nos acusar por não saber viver. É delicado não porque somos amorosos; é bruto não porque somos injustos. Independente de nossa posição no mundo, Ele quer existir, eis a melhor forma de amá-lo: deixar que Ele seja sem que o inventemos.  Ele não pode ser a invenção de uma alma que a priori está acima do bem e do mal. Um Deus inventado não existe. Ele é independente e separado de nós. Talvez possamos resumir a compreensão de Clarice acerca de Deus nesta frase: “eu não tenho o poder. Tenho a prece”.

 

Referências   

LISPECTOR, Clarice. Correspondências. Rocco, 2002. 

___, Felicidade Clandestina. Editora Rocco.

 

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