Clarice Lispector e a contraditória relação com o outro

20 de Noviembre de 2020

[José Neivaldo de Souza]




Clarice não se via a partir de visões ou julgamentos externos, porém a relação com o outro tinha um lugar especial em sua vida e sua obra mostra isso. Partia de si mesma, da solidão e do vazio, modo que encontrou de se posicionar no mundo. Não buscava ser compreendida, mas era cautelosa no trato e na convivência com o diferente. É uma contradição? Pode ser, mas quem disse que a vida é feita de verdades absolutas? Contradição, como escreveu o filósofo Pascal, “não é sinal de falsidade”. Procurava ser autentica, apesar da contradição; uma prisioneira da própria liberdade. Em Um Sopro de Vida escreveu: “eu nunca fui livre em minha vida inteira. Por dentro eu sempre me persegui. Eu me tornei intolerável para mim mesma. Vivo numa dualidade dilacerante. Eu tenho uma aparente liberdade, mas estou presa dentro de mim”. A partir desta contraditória relação consigo mesmo que arriscamos compreender a sua relação com o outro, a forma como ela lidava com as pessoas. 

 

Ela recuava diante daqueles que se diziam sinceras e verdadeiras. Em Hora da Estrela expressa, revela uma certa dificuldade em relação às pessoas que se dizem sinceras, verdadeiras. Para ela, a verdade não é algo definitivo, é relativa assim como é a existência humana; é coisa da solidão, do vazio, do olhar para dentro, um sentido a ser inventado e nunca uma realidade a ser incorporada ou subjugada. Para ela, terrível é uma “verdade” que, vindo de fora, se impõe categoricamente como única via de salvação. Acerca disso escreveu: “Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada”. A verdade, para ela, mais que apontar caminhos, deve abri-los. 

 

Apesar da solidão, do vazio, dizia ela, é preciso abrir caminhos para a vida, se alimentar, ser sociável e amar. A verdade é aberta ao diálogo, à contradição, às coisas que acontecem “apesar de”. É nesta neste caminho a ser conquistado que ela se equilibrava na relação com o outro. Assim escreveu: “Inclusive muitas vezes é o apesar de que nos empurra para frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi criadora de minha própria vida”. Esta angústia aparece em sua autoanálise principalmente quando trata do pertencimento. De um lado o sentimento de alteridade; desejava ardentemente sair de si para se dar inteiramente ao outro; em contrapartida, o receio e o medo de se revelar totalmente, por isso dizia: “uns cosem pra fora, eu coso pra dentro”.  

 

No pertencimento a pessoa experimenta, de forma contraditória, as diversas formas de relacionamento. Na relação com o outro, Clarice experimentou a entrega e o recuo. A vontade de pertencer vem de berço e, segundo ela, chegou como “fome insaciável” que a acompanhou por toda a vida. Uma fome que, a um só tempo, produzira uma tensão entre desejo e medo, como bem observou: “Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre”. O medo de se lançar ao outro, apesar do desejo de fazê-lo, fez com que ela recuasse e criasse a sua forma arisca de estar na vida. A questão existencial de Clarice, parafraseando Shakespeare, é: “pertencer ou não pertencer”. O que fazer com a ambiguidade do desejo, esta tensão entre vontade e medo?  

 

De um lado, a vontade de pertencer e, do outro, o medo de se revelar e decepcionar o outro. Esta dualidade, invés de paralisá-la, pelo contrário, a fez se arriscar e dar o melhor de si no convívio e na inteiração com outro. Pertencimento, no entendimento de Clarice, não é sujeição à uma liderança ou qualquer forma de poder com uma verdade construída, mas uma força que brota do interior e se dirige ao outro com o propósito de fortalecê-lo.

 

Para nossa autora, o desejo de pertencimento vem de berço assim como o medo de se revelar totalmente. Em um texto deixa escapar que fora gerada no amor e na esperança. No amor, porque desejada e planejada pelos pais; na esperança, porque o seu nascimento deveria trazer cura à sua mãe que sofria de uma certa enfermidade. Sobre o amor escreveu: “amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca”. Mas... o amor tem os seus desafios e, apesar dele, há expectativas e esperanças que depositam em nós e que, muitas vezes, nos criam um sentimento de decepção. No caso de Clarice, a mãe não foi curada e a esperança dos pais tornaram-se frustração. Sobre ela, caíra a culpa de ter falhado nesta missão. Se, por um lado, tinha certeza do o amor paterno, por outro lado não se perdoava. Eis a dubiedade: o desejo de pertencer, de amar e ser amada e o medo de decepcionar e ser decepcionada. Apesar da ambiguidade e da contradição pertencer é viver. Sobre o sentimento de pertença escreveu ela: “Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho”.

 

A relação com o outro, na perspectiva de Clarice, reflete o modo contraditório da relação do eu consigo mesmo. As falhas, os erros, as contradições são imprescindíveis à vida, pois assim, ao olharmos as nossas próprias imperfeições podemos lidar com as confusões e equívocos alheios. Vejo o outro a partir da mesma visão com a qual me enxergo, por isso a verdade sobre o outro é sempre inventada à imagem do que criamos e decidimos sobre nós mesmos. Escreveu: “Terei toda a aparência de quem falhou, e só eu saberei se foi a falha necessária”. 

 

LISPECTOR, Clarice. Um Sopro de Vida. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1978. 

___, A Paixão Segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 

 

___, Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 

 

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