Clarice Lispector, à imagem do Mistério

30 de Octubre de 2020

[Por: José Neivaldo de Souza]




Não compreendo Clarice! Ninguém a compreende, até o seu melhor biógrafo pode se equivocar a respeito dela. Então... Por que este empenho? Porque ela é um mistério! E como o grande Mistério não se revela totalmente, sempre nos deixa na falta, no desejo. Como leitor, o que me inspira é a corda esticada sobre a qual Clarice se equilibra e se identifica. Sua filosofia me faz lembrar Nietzsche ao dizer que o homem se assemelha a uma corda estendida sobre o abismo, de um lado o perigo de olhar para traz ou parar, do outro o trajeto a ser percorrido rumo a superação de si. Clarice nos faz pensar nesta curta travessia. Ela se equilibra entre a desfaçatez da razão e a modéstia do coração. 

 

Não parar e não olhar para traz é renunciar à pretensão humana de querer responder as demandas do mundo baseando-se na “falsa” segurança do intelecto humano. Ciente disso, ela preferia a ironia socrática: “nada sei”; ser uma incógnita, um mistério não traduzível, eis como ela se definia: “O pouco que sei não dá para compreender a vida, então a explicação está no que desconheço e que tenho a esperança de poder vir a conhecer um pouco mais”. O sentimento não pode ser refém do entendimento, isso significa alienação do ser, uma falsa liberdade. Clarice questionava a liberdade que se apoia em argumentações lógicas, por isso recusava chamar de liberdade a desobediência dos sentimentos: “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome”. 

 

Clarice Lispector escrevia para si, para libertar a alma, dar conta da própria vida e não para ser compreendida: “eu não sou um intelectual, escrevo com o corpo”. Seus escritos confundem, mas levam a uma séria reflexão: o que é escrever com o corpo? Como sentir o vazio e a plenitude ao mesmo tempo? De um lado a realidade: “Sou uma pessoa insegura, indecisa, sem rumo na vida, sem leme para me guiar: na verdade não sei o que fazer comigo”; do outro lado a utopia, a contemplação da própria grandeza: “E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior do que eu mesma, e não me alcanço”. Sobre a corda estendida nesta contradição, a equilibrista mostra ao seu leitor o quanto é preferível a confusão dos sentimentos à clareza ofuscante da inteligência. Aqui aparece um facho de luz diante da impossibilidade de compreendê-la perfeitamente.   

 

Uma mulher na contramão de seu tempo. Rejeitava a via fácil e se sentia atraída pelo erro, seduzida pelo impossível. Somos o que o impossível faz de nós! A busca de si tem como ponto de partida e chegada o vazio, a solidão. Caminhamos em direção àquilo do qual fugimos. Como lidar e conviver com esta dura realidade? A linguagem da razão é insuficiente para expressar este trajeto que, sob o pulsar do coração, se torna mais leve e afável. É próprio da razão rotular defeitos, moralizar. Não raras vezes, há defeitos que são verdadeiros alicerces e cortá-los pode ser perigoso, pois pode levar a pessoa a desistir de si. Imoral, para ela, é cortar defeitos. Ao falar dos seus defeitos dizia que entre eles estão: o amar demais, o se entregar inteiramente e o buscar demasiadamente a felicidade. 

 

Pela via do coração, atravessar a corda esticada, às vezes bamba, da vida, é mais arriscado, pois consciente de nossas fraquezas, buscamos a fortaleza: “Até onde posso, vou deixando o melhor de mim. Se alguém não viu, foi porque não me sentiu com o coração”. No confronto consigo mesma, ela se deparou com uma realidade não confortável ao se opor àqueles que buscam uma lógica em todas as coisas. Sentimento não tem lógica. Para ela, viver é um absurdo, por isso as perguntas têm mais valor, ainda que fiquem sem respostas.  

 

Quem somos? Não sabemos! Esta incerteza gera angústia e confiança ao mesmo tempo. É preciso render à própria ignorância, eis o trampolim de onde se dará o mergulho no interior, o lugar mais desconhecido do ser humano. Nossa melhor parte, para ela, é indizível, é aquela que nada sabe, apesar de ser desconfortável, desarticulada e provocar medo: “Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar pois o próximo instante é o desconhecido”. Mas, medo é impulso e ela sabia disso, não obstante os riscos e perigos: “vou começar meu exercício de coragem, viver não é coragem, saber que se vive é coragem”. Eis uma forma contraditória de estar e ser feliz no mundo: intensa e exagerada.

 

Empreitada impossível é compreender Clarice a partir dela mesma, mas seus escritos revelam esta corda estendida sobre o abismo que remete a São Paulo: “na fraqueza que sou forte”.  De um lado, amarrada na fortaleza da razão, é preciso continuar equilibrando sem olhar para traz; do outro lado, desenlaçada nas ruinas do coração, é preciso olhar para frente, para o desconhecido, para o mistério. Talvez a personagem nordestina, Macabéa, em A Hora da Estrela seja a metáfora de Clarice, o modo como ela se enxergava: “Quero neste instante falar da nordestina. É o seguinte: ela como uma cadela vadia era teleguiada exclusivamente por si mesma. Pois reduzira-se a si. Também eu, de fracasso em fracasso, me reduzi a mim, mas pelo menos quero encontrar o mundo e Deus”.

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