Clarice Lispector: por uma teopoética do amor

16 de Octubre de 2020

[Por: José Neivaldo de Souza]




“A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível. Extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique” 

 

Clarice Lispector não foi apenas uma escritora, mas uma vida que encarnou, em palavras, a dor e a alegria de existir: "...juro que há em meu rosto sério uma alegria até mesmo divina para dar". Deslocada no mundo, não encontrava outra forma de se preservar senão escrevendo, de maneira incompleta, sobre as coisas que o Impossível fez nela: “se não fosse sempre a novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias”. No oficio de escrever comunicava os seus riscos. Viver é arriscado! Para ela, é o amor que faz valer a pena o risco de viver: “A gente escreve como quem ama”. A salvação é pela gratuidade do amor: “ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca”. Mas, o amor é falta. É nos esboços inacabados e vacilantes, que Clarice equilibrava as relações consigo mesma, com os outros e com Deus, ao qual ela se dirigiu como um “vazio tremendo”.

 

É na relação consigo mesma, na escuridão do seu interior, que ela reinventou o seu mundo. Nada de perfeição! O seu modo de ser no mundo: inacabada, desarticulada, solitária, culpada, porém desejosa de liberdade e completude. 

 

Sentir-se imperfeita fez de Clarice uma escritora audaciosa, consciente de sua humanidade: “Gosto de um modo carinhoso do inacabado, do malfeito, daquilo que desajeitadamente tenta um pequeno vôo e cai sem graça no chão”. Este gosto do inacabado, do desarticulado, malfeito a isentou de pensar as coisas sob a ótica da lógica, do pensamento sistematizado. Eis a forma que encontrou de ser e se sentir bem no mundo.    

 

A solidão, para ela, não é uma inimiga. É na solidão que nos enxergamos e encontramos força para a vida: “Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite”. A solidão, nesta perspectiva, nos faz conscientes da vulnerabilidade humana, dos nossos erros e pecados: “só o errado me atrai, e amo o pecado, a flor do pecado”, mas é também no confronto com a própria solidão que aprendemos a nos colocar de joelhos: “Peço perdão por não saber me dar nem a mim mesma. Para me dar desse modo eu perderia a minha vida se fosse preciso, mas peço de novo perdão... não sei perder minha vida”. Na solidão valorizamos a liberdade de ser. 

 

Na relação com as pessoas, Clarice tinha clareza que nada podia dar a não ser a tentativa de amar. Escrever sobre si foi a forma mais sutil de se libertar e se entregar ao outro. Amar, não é apenas uma forma de se dar, é a única. O amor, não no sentido platônico, perfeito, idealizado e endeusado, mas existencial à custa do próprio sacrificio; não é algo a ser entendido, mas vivenciado. Para Clarice, a solidão é “a última coisa que se pode dar de si”. Em uma de suas preces escreveu: “que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo”. Ficar com o nada, mas sob o sentimento de plenitude, comporta um grande risco, mas é a melhor maneira de amar: “Tente o novo todo dia. O novo lado, o novo método, o novo sabor, o novo jeito, o novo prazer, o novo amor. A nova vida. Tente. Busque novos amigos. Tente novos amores. Faça novas relações”. 

 

A alteridade, na perspectiva de Clarice, parte do interior, é questão de alma e não se conforma à uma moral de aparência. Na sua opinião, tudo o que existe tem o seu interior, as pessoas, o mundo. Por isso, pedia às pessoas que a observassem sem que ela percebesse, a fim de perceberem o que acontece a uma pessoa que “se pactua com a comodidade da alma”.

 

Na relação com Deus, Clarice parece encarnar o pensamento de Santa Tereza d’Ávila, pois vê a existência fugidia: “tudo passa!” A sensação que tinha do Mistério era clara e se manifestava como um infinito vazio. É uma felicidade que, ao mesmo tempo, nos convoca e nos dificulta; é eterna e fugaz: “Porque na pobreza de corpo e espírito eu toco na santidade, eu que quero sentir o sopro do meu além. Para ser mais do que eu, pois tão pouco sou”.

 

Para concluir, vale a pena ler uma das preces em que ela trata de mostrar que a relação com Deus se trata do confronto com a própria falta. Ao Grande vazio nada mais podemos dar a não ser a própria solidão, um vazio cheio de erros, pecados e desejo de amar. 

 

Meu Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença. Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude. Faça com que eu seja a Tua amante humilde, entrelaçada a Ti em êxtase.  Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo e receber como resposta o amor materno que nutre e embala. Faça com que eu tenha a coragem de Te amar, sem odiar as Tuas ofensas a minha alma e ao meu corpo. Faça com que a solidão não me destrua. Faça com que minha solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. Receba em teus braços o meu pecado de pensar. 

 

 

Indicações de leitura

 

LISPECTOR, Clarice. Um Sopro de Vida (Pulsações). Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 3ª edição. 1978.

___, A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.

___, De amor e amizade: crônicas para jovens. VASQUES, Pedro Karp (org.) Rio de Janeiro: 

 

Rocco Jovens Leitores, 2010.  

 

 

Imagen: https://www.diariovasco.com/culturas/libros/hechizo-irresistible-clarice-lispector-20181210212428-ntrc.html

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