Reflexões indignadas de cristãs e cristãos católic@s

24 de Agosto de 2020

[Márcia Miranda, Leonardo Boff, Maria Tereza Sartorio, Pedro A. Ribeiro de Oliveira... e outros e outras]




Somos cristãs e cristãos católic@s, leig@s, religios@s e presbíteros que nos sentimos inspirados pelo Concílio Vaticano II e pelos documentos do CELAM que conscientemente temos assumido a missão de, à luz do Evangelho, ajudar junto com outr@s, a transformar a sociedade com tantas desigualdades e injustiças que penalizam os pobres e clamam ao céu. Fazemo-lo como parte plena da Igreja Católica, em comunhão com tantas pessoas que animam essa Igreja desde as Comunidades Eclesiais de Base até as Conferências Episcopais e a Diocese de Roma.

 

Comovid@s pelo sofrimento de uma menina de dez anos vítima de cruéis estupros – que precisou recorrer ao Judiciário para interromper a gravidez resultante daquela violência e foi atendida num hospital de Recife – e solidári@s com @s profissionais da saúde que a atenderam, obedecendo estritamente a legislação brasileira referente ao caso, sentimos que pertence também à nossa missão expressar o nosso profundo desconforto causado pelas manifestações de Bispos do Brasil.

 

Duas falas publicadas no site da CNBB no dia 18/08 bastam como exemplos. O site reporta a fala de seu Presidente, D. Walmor A. Oliveira, referindo-se a “dois crimes hediondos”, sendo um a violência sexual e o outro a violência do aborto. O texto dá a impressão de que o crime de estupro é menos hediondo do aquele do aborto. Fala que devemos ser “compassivos” mas não mostra em sua comunicação esta compaixão, própria da prática de Jesus e tão pregada pelo Papa Francisco.

 

Destaque maior é dado à manifestação de D. Ricardo Hoepers, presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Vida e a Família, que fala do aborto como “um ato horrendo, de um ato abominável, nós demos a pena capital a um bebê.”

 

A nossa perplexidade e até certo ponto indignação tem duas causas. A primeira é com o simplismo intelectual dessas falas, que, seguindo a linguagem vulgar, não distingue embrião, feto e bebê, e ainda qualifica como pena capital um procedimento cirúrgico destinado a salvar a vida de uma menina, procedimento este feito dentro da estrita observância da legislação oficial brasileira para o caso.

 

De uma autoridade episcopal nós esperaríamos uma linguagem pastoral de moderação, evitando excessos emotivos moralistas e juvenis que ao ser reproduzida pelas redes digitais pode causar confusão em não poucas pessoas.

Tememos mais, que a dureza de coração deste prelado, afaste muit@s católic@s deste tipo de Igreja que se mostra sem compaixão para com uma menina de dez anos sempre salvaguardada a sacralidade da vida de cada ser em gestação.

 

A moral tradicional sempre ensinou, e supomos que o bispo Hoepers deveria saber disso, que se a vida da menina corre risco, a intervenção para salvar sua vida que implica indiretamente a morte do feto, não deve ser considerada aborto. Este não é intencionado, mas é entendido como um efeito não voluntário e mal menor face ao bem maior que é o de salvar a vida da mãe sob risco.

 

Ninguém que conhecemos considera o aborto um método de contracepção equivalente a qualquer outro, e nenhuma mulher recorre a esse procedimento com a mesma serenidade com que vai ao dentista. Estamos convencidos de que o aborto é sempre uma decisão muito grave e deve ser tratada com respeito. 

 

Estima-se que, no Brasil, a cada ano mais de um milhão de mulheres recorrem ao aborto. As que podem pagar o procedimento numa clínica, o fazem com segurança; mas as mulheres pobres arriscam a sua vida e muitas, inclusive jovens e adolescentes, morrem. E são milhares. Por isso, o debate deve ser feito com seriedade, levando em conta os conhecimentos científicos, a Ética e – para os cristãos – os preceitos bíblicos de defesa da Vida.

 

A outra causa de nossa perplexidade é pelo destaque eclesiástico dado a essas manifestações enquanto a Carta ao Povo de Deus, endossada por mais de 150 bispos foi oficialmente ignorada pela CNBB. Ali se tratava de denunciar o descaso do governo que tolera a morte de mais de 100 mil pessoas pelo Covid-19 que não precisariam ser fatalmente vitimadas. A vida de todas essas pessoas, não só as idosas, mas também jovens e até crianças, é igualmente sagrada e merece todo o empenho cristão para salvá-las.

 

Até parece que o Papa Francisco já previa isso ao referir-se a “ideologias que mutilam o coração do Evangelho”. “A defesa do inocente nascituro, por exemplo, deve ser clara, firme e apaixonada, porque neste caso está em jogo a dignidade da vida humana, sempre sagrada, e exige-o o amor por toda a pessoa, independentemente do seu desenvolvimento. Mas igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura, e em todas as formas de descarte”. (Gaudete Exsultate 101).

 

Diante dessa realidade atual de nossa Igreja, consola-nos o que disse a mesma CNBB, nos sofridos anos da ditadura militar aberta, no Comunicado Pastoral ao Povo de Deus, de 25 de outubro de 1976.

 

Citemos apenas a Introdução, onde se lê “Nossa intenção é iluminar com a luz da Palavra de Deus os acontecimentos atuais para que os cristãos tomem, diante deles, uma atitude de fé e coragem, uma animação parecida com aquela que dá o livro do Apocalipse. Ao cristão é proibido ter medo. É proibido ficar triste”.

 

E segue-se uma preciosa apresentação da realidade da época, com perseguição aos pobres e à Igreja, sempre relacionada ao Novo Testamento, que é a única fonte citada – ao todo, 14 vezes.

 

Praticamente todos nós temos vivido bastante para ver, não sem tristeza, o apequenamento da CNBB e a perda do fervor profético face às desgraças que assolam nosso povo, especialmente os mais vulneráveis. Esperamos viver ainda o suficiente para ver também o seu ressurgimento, com esses novos bispos que, em sintonia com a proposta de Igreja em saída e com a valiosa colaboração das Pastorais Sociais, denunciam os sistemas e os governantes que destroem a Vida das pessoas e de nossa Natureza ao mesmo tempo que anunciam a promessa de um novo céu e uma nova terra, movida pela mesma Esperança que deu vida à vida do santo Pedro do Araguaia.

 

Confira a carta e os nomes das pessoas que apoiam.

 

Imagen: https://litci.org/pt/opressao/mulheres/basta-de-violencia-machista-para-que-nenhuma-menina-seja-a-proxima-vitima/

 

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