Espiritualidade em tempo de pandemia

20 de Julio de 2020

[Por: Emerson Sbardelotti]




A 50 anos, a Teologia da Libertação espalhou raízes como uma reflexão espiritual. Antes da TdL veio a Espiritualidade da Libertação. Neste momento em que vivemos um tempo de isolamento social, fraternal e familiar, estas raízes da EdL e da TdL se aprofundam ainda mais nestas igrejas familiares, nos processos de educação da fé e da vida que apontarão para algo novo: nada mais será como o que vivemos antes.

 

Espiritualidade é tudo aquilo que dentro de mim, de nós, faz uma transformação. Tudo aquilo que me leva a mudar enquanto ser humano. A espiritualidade desce da cabeça para o coração e através do respeito, diálogo e encontro, coloca-me em direção ao diferente fazendo, portanto, uma mudança interior e exterior.

 

O isolamento social tem sido benéfico pois exige de mim, de cada um, de cada uma de nós, conhecer alguém que pouco conhecemos: nós mesmos! Tenho que nestes dias de quarentena encarar a mim mesmo sem máscaras, sem subterfúgios, sem rotas de escape, apenas eu comigo mesmo, para entender o que Karl Rahner já dizia: Espiritualidade é viver pelo Espírito.

 

Se eu vivo no Espírito, não posso voltar a ser quem eu era antes da pandemia. Preciso ir além, exercitando a cada dia a misericórdia, a compaixão, a justiça, a paz. Precisamos voltar à anormalidade, pois a normalidade não deu certo!

 

A Espiritualidade da Libertação é a Espiritualidade que vivo e partilho, pois está na herança, na pedagogia, na prática e no seguimento de Jesus de Nazaré.

 

A espiritualidade é para mim alteridade, pois, me coloco sempre na estrada que me leva ao outro, me leva ao diferente. Não é fácil esta caminhada, se não conseguimos respeitar o outro, não conseguimos dialogar com o outro, não conseguimos encontrar o outro.

 

A espiritualidade é para mim o encontro do ser humano com o Deus da Vida, pois, só há espiritualidade dentro de um cenário em que está inteiramente inserida na realidade histórica. É fácil falar do fim, porém, o difícil é indicar o começo e o caminho.

 

A fé não é antídoto para o COVID-19, pelo menos até o momento, a ciência ainda não atestou isso. Mas, a fé, caminha de mãos dadas com a vida e a vida é cheia de espiritualidade que tem como características a liberdade e a libertação.

 

O lugar da pluralidade que liberta é a valorização da pessoa, do indivíduo, da consciência, da diversidade. E como dizia o teólogo Segundo Galilea: “A espiritualidade é o conjunto de práticas e atitudes que manifestam a experiência de Deus (do Espírito Santo), numa pessoa, numa cultura, ou numa comunidade. É toda existência humana que põe em marcha existência pessoal e comunitária. Trata-se de um estilo de vida que dá unidade profunda ao nosso orar, nosso pensar e nosso agir”. Acredito nisso!

 

A alteridade é um substantivo feminino que procura explicar a condição natural do que seja o outro; deve ser entendida a partir de uma divisão entre um “eu” e um “outro”, ou entre um “nós” e um “eles”. A alteridade se aproxima da empatia, pois implica colocar-se no lugar ou na pele desse “outro”, alternando as perspectivas e as prospectivas que nascem em torno do respeito, do diálogo e do encontro.

 

A pandemia e o isolamento social trouxeram um novo viés para as relações humanas: todo ser humano precisou se livrar das máscaras e das maquiagens e, teve que extinguir os preconceitos e encarar-se em frente do espelho. O ser humano precisou nestes quase 100 dias de clausura se reinventar e melhorar.

 

O ser humano consigo mesmo na busca por um entendimento profundo de como fortalecer ou refazer laços de amizade e de admiração desfeitos por conta de fofocas, desentendimentos e mentiras. É o desafio que terá nos dias que virão. Uma minoria abraâmica, como dizia D. Helder Camara, sairá modificada desta pandemia buscando fazer a diferença.

 

A espiritualidade enquanto alteridade reforça a ideia de que somos seres humanos propensos à liberdade e à libertação; o Espírito que habita em cada um, em cada uma de nós, nos convida e nos impulsiona a mergulharmos nas águas profundas do nosso ser, mas ao retornarmos à superfície, ir em direção do outro, do que é diferente, e que fortalece a nossa pluralidade na unidade.

 

A Teologia da Libertação ensinou a quebrar os grilhões que tornavam mulheres e homens da América Latina e Caribe em escravos políticos, sociais, econômicos e religiosos. Na liberdade de filhas e filhos de Deus, ousamos sonhar um outro mundo novo e possível.

 

Neste outro mundo novo e possível será preciso experimentar uma espiritualidade do olhar. Antes, podíamos contemplar a face de mulheres e homens em sua plenitude e beleza; com a pandemia, resta-nos contemplar os sinais transmitidos pelos olhos; estes ainda não foram escondidos pelas máscaras. A comunicação que brota e jorra dos olhares, de tantas pessoas, define o grau de cumplicidade e proximidade com a outra pessoa que deve se manter longe, para o bem de ambos.

 

Será necessário assistir aquele filme: AVATAR. Há uma frase do casal principal que ilustra muito bem este exercício de enxergar a gentileza, a misericórdia, a coragem, a compaixão, o amor e a ternura que existe na outra pessoa, mas que só pode ser revelada com a contemplação profunda do olhar: “EU VEJO VOCÊ!”

 

A espiritualidade do olhar nos conecta com o respeito, com o diálogo e com o encontro presente no olhar daquele e daquela que não pode mais receber um abraço, um afago, o distanciamento é essencial para nossa sobrevivência. Se o olhar é a porta da alma, sem dúvida é a janela do coração; e o termômetro da emoção e da razão.

 

Eu vejo você, e você não é mais invisível para mim! Toda a sua dignidade humana me interessa: suas dores, suas alegrias, suas derrotas, suas conquistas. Eu vejo você por inteira, por inteiro. Eu vejo você, porque antes eu me vi, eu me enxerguei e me aceitei enquanto ser humano comprometido com o Espírito de Jesus de Nazaré e isso me faz frutificar o mundo.

 

A espiritualidade do olhar não tem uma fórmula, não tem um método. Ela nasce na observação atenta dos olhares. O olhar não faz barulho nenhum. Neste silêncio encontraremos as respostas. Me lembro do último encontro que tive com meu querido amigo e irmão D. Pedro Casaldáliga, em Ribeirão Cascalheira – MT, durante a Romaria dos Mártires da Caminhada Latino-Americana, em 2016. Ele estava sendo cuidado em sua cadeira de rodas e eu fiquei ali parado na porta, olhando-o de longe. Ele me viu, me reconheceu, me beijou e me abraçou com o seu olhar. Não dissemos uma única palavra, mas falamos tudo o que a saudade e nossa amizade pediam.

 

Para mim, há um profundo significado em dizer eu vejo você! E para você?

 

Emerson Sbardelotti

Simplex agricola ego sum in regnum vitae.

 

 

 Arte-Vida de Francisco Daniel

 

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