09 de Abril de 2020
[Por: José Neivaldo de Souza]
Páscoa é celebração! Celebrar é tornar célebre, solene, digno de alegria. Mas, o que celebramos? Para muitos, seja por falta de reflexão ou informação talvez, é apenas mais uma data para troca de chocolates ou um saboroso almoço com os seus. Não vejo problema nisso, pelo contrário, é também um tempo para as coisas que nos alegram. Páscoa, porém, é muito mais. Ela nos remete a uma tradição, diria Rubem Alves: a “um tempo que se foi, mas que se recusa a ir de vez e fica dentro da gente, atormentando o coração com saudade”. Uma tradição que transcende o tempo e que, à luz da fé judaico-cristã, dá um sentido sagrado à libertação ou à ação de Deus que não suporta a injustiça e a opressão. Escreveu São Paulo: “onde está o Espírito do Senhor ali há liberdade” (2Cor 3,17). Quem são os oprimidos hoje? Como pensar a libertação à luz dos testemunhos bíblicos? Podemos falar de uma nova páscoa?
Os oprimidos de hoje são as vítimas de um sistema que acorrenta, explora e leva à morte. Esta situação é percebida no Brasil e podemos observá-la na desigualdade social que atualmente é uma das maiores do mundo. Há uma imensa massa de pobres, desempregados e miseráveis vendendo por um salário de fome sua força de trabalho, enquanto há poucos, detentores dos meios de produção ou do capital, acumulando riquezas e influenciando os poderes a seu bel prazer. No relatório da ONU a desigualdade tem um rosto: falta de acesso a uma educação de qualidade, saúde, saneamento básico, transportes públicos eficientes, bons salários e falta de uma justa política fiscal. Sobe aos céus o Clamor das vítimas deste sistema desigual e produtor de opressão.
Como pensar o clamor destas vítimas à luz da Bíblia? A Bíblia nasce do grito e da esperança de libertação dos oprimidos: “No Senhor, espero a libertação” (Gn 49,18). Os hebreus, oprimidos na terra do Egito, clamaram por libertação e Deus viu e ouviu o seu sofrimento (Ex 3,8). É preciso conhecer a mensagem de libertação para entender o sentido da páscoa. Deus se revela como Iahweh, o único e verdadeiro capaz de descer ao humilhado, arrancá-lo da exploração dos ídolos e do poder dos exploradores e conduzi-lo à uma nova terra, templo vivo de Criador. Quarenta anos durou a travessia pelo deserto e, Isaías, em outro contexto de opressão, traduziu a compaixão divina: “Eu o Senhor, o chamei para justiça; segurei firme a sua mão. Eu o guardarei e farei de você um mediador para o povo e uma luz para os gentios, para abrir os olhos dos cegos, para libertar da prisão os cativos e para livrar do calabouço os que habitam na escuridão” (Is 42,6-7).
O Novo Testamento, ao reinterpretar a páscoa, também “traz à memória o que pode dar esperança” (Lm 3,21). Relata a ação libertadora de Jesus, o Cristo. Por ele, sobe ao Pai celestial o clamor dos pobres e oprimidos; com ele, o amor divino é compartilhado e nele, se dá a vitória sobre o opressor que durante quarenta dias tentou seduzi-lo no deserto. A opressão seduz, cega e torna as pessoas submissas aos ídolos do sistema tirano. Jesus não se dobra e, até o fim, nos dá uma lição: para libertar o outro é preciso libertar a si próprio: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para pregar boas-novas aos pobres. Ele me enviou para proclamar liberdade aos presos e recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos” (Lc 4,18).
A Igreja primitiva, trazendo à memória esta tradição, entendeu que, com a libertação do pobre da libertação do pobre, liberta também aqueles que vivem nas trevas do poder e da riqueza. A comunidade de Timóteo (1 Tm 6,17) entendeu esta mensagem: “Manda aos ricos deste mundo que não sejam altivos, nem ponham a esperança na incerteza das riquezas, mas em Deus, que abundantemente nos dá todas as coisas para delas gozarmos”. Os que são tocados por esta tradição, à luz da fé pascal, têm a missão de anunciar a libertação: que ninguém seja violentado nos seus direitos; que nenhuma pessoa passe fome, mas receba um bom salário pelo trabalho digno que realiza; que ninguém seja ignorado em sua dor e sofrimento e que não haja preconceitos por conta de raça, cor ou gênero.
Páscoa, mais do que uma festa com banquetes e bebidas, é tempo de reflexão e retomada do verdadeiro sentido de libertação. É momento de voltarmos à nossa tradição judaico-cristã e lembrarmos da História de nossos pais, os expatriados e explorados por um sistema injusto e violento. É momento de ressignificar o tempo que se chama hoje. Páscoa é tempo de celebrar, mas é principalmente tempo de conscientização e conversão de nossas ideias que, muitas vezes, infelizmente, combinam com a dos poderosos deste mundo.
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