Helder Camara: poemas de desalento

13 de Febrero de 2020

[Por: Eduardo Hoornaert]




A prosa epistolar de Helder Camara está invariavelmente impregnada de entusiasmo, o que se compreende, pois ela serve basicamente para animar a Família Messejanense, ou seja, o grupo feminino & companhia que o acompanha em pensamento, sonho e espiritualidade. Ela contrasta com a poesia helderiana, como já demonstrei aqui em diversos textos de meu blog. Questionadora, expressando até desânimo, sentimento de abandono e frustração, essa poesia revela um Helder crítico, que não teme emitir opiniões um tanto inconvenientes para um bispo.

 

O que nos interessa aqui é o seguinte: o contraste entre prosa entusiasta e poesia questionadora nos permite penetrar mais fundo na personalidade e nos posicionamentos de um dos mais importantes expoentes do pensamento brasileiro nos anos 1960-1990. Neste texto me restrinjo a apresentar doze poemas que aparecem nas Cartas Circulares de 13-14 de março 1971 e de 16-17 do mesmo mês (respectivamente pp. 127-130 e 136-138 do Volume V, Tomo III da Edição Cepe, Recife).

 

Na noite de 13-14 de março aparecem sete poemas, Por sete vezes repetidas, Helder se queixa diante de Deus: por que Te escondes tanto?, por que és tão vingativo? por que quase me levas a resmungar? o pouco que consigo fazer não vale nada? a culpa é toda minha? por que Tu amaldiçoas? por que não me dás a mão? Sete amargas exclamações de impaciência diante do silêncio de Deus. É verdade: o início do ano 1971 é particularmente angustiante para o Bispo Helder, perseguido pelo governo, abandonado por parte do clero, incapaz de realizar o que planeja e que constata que o pouco que consegue realizar não é valorizado.

 

Por que Te escondes tanto?.

 

Se perguntarem por Teu Nome

que devo responder?

Se rirem de Ti

e disserem

que já morreste,

já não és necessário

e estás sobrando?

Não precisas de conselhos, é claro.

Se tivesse em Teu lugar,

não esmagaria ninguém,

não faria prodígios para exibir-me.

Mas ficaria menos distante,

menos ausente...

Ao menos dos mais íntimos

Não me esconderia tanto (pp. 127-130).

 

Por que és tão vingativo?

 

Viste a miséria

de Teu Povo

no Egito.

Não estás cego,

nem surdo,

nem insensível,

nem sem poder.

Precisarei lembrar-Te

que há continentes inteiros

que viraram Egito?...

Salva-nos,

através do Mar Vermelho.

Mas, por Quem és,

não afogues nas águas

os modernos Faraós

e nem mesmo

os seus cavalos (ibidem).

 

Por que quase me levas a resmungar?

 

Não me deixes murmurar

Sei

a impressão tristíssima,

que Te causam

os murmuradores (alusão aos ‘murmuradores’ do Livro Êxodo)

Em lugar

de falar entre os dentes,

de soprar desconfianças,

de envenenar,

especializar-me

em ver

o lado bom da vida

e o que há de positivo

no segundo que passa (ibidem).

 

O pouco que consigo fazer não vale nada?

 

É verdade, Senhor

que não tenho figos (alusão a Lc 13, 1-9, a parábola da figueira estéril)

ou, quando muito, produzo

figos abortivos,

que até os animais rejeitam...

Mas não vale

a sombra que ofereço?

Não contam

os ninhos

que as aves constroem

confiantemente

em meus ramos?...

Poda-me, Senhor!

Faze enxertos, se preciso.

Não me deixes falhar

aos planos misteriosos

do Senhor e Pai! (ibidem).

 

A culpa toda é minha?

 

Pensas em arrancar-me

porque não produzo figos...

Perdoa que te pergunte:

a culpa é toda minha?

não entras em nada,

não tens parte alguma

na minha condição tristíssima

de figueira estéril? (ibidem).

 

Por que Tu amaldiçoas?

 

Não creio que ninguém

seja estéril

pelo gosto de não-produzir.

Não creio

que ninguém se alegre

de ser infecundo,

incapaz de reproduzir-se,

de multiplicar-se,

de vencer a morte

prolongando-se nos frutos.

Revê, Senhor, tuas maldições.

Não amaldiçoes ninguém!

E, sobretudo, cuidado:

não cometas a injustiça

de castigar

quem já arrasta a humilhação

de acabar em si mesmo (ibidem).

 

Por que não me dás a mão?

 

Exigiste figos

Tentei um esforço máximo.

Forcei as raízes

a sugar, ainda mais, a terra.

Sacrifiquei folhas

pelos frutos.

Os figos estão aí

sem ninguém

que os apanhe...

Manda, ao menos, teus passarinhos,

para que não experimente

a pior das esterilidades

– a de criar frutos inúteis

que acabam caindo

de maduros e podres! (ibidem).

 

Na noite entre 16 e 17 do mesmo mês, de novo uma carga de poemas desolados. Desta vez são cinco: cadê a terra onde jorra leite e mel? adianta tentar reconciliar oprimido com opressor? como cultivar a alegria nas condições em que vivo? e se o filho pródigo nem pensa em voltar para casa? Tu também não ficaste por vezes desanimado?

 

Cadê a terra onde jorra leite e mel?

 

Senhor, cadê o leite,

cada o mel? (alusão ao Livro Êxodo)

Nem maná,

nem as maravilhas

que prometeste.

Longe de mim murmurar.

Bem vês

como Te defendo,

no meio do nosso Povo.

Mas como salvar a alegria

Que tanto exiges

e é de fato sinal

de confiança plena

e de entrega sem limites,

se meu Povo faminto

nem pode dizer que tem fome,

se meu Povo explorado

se mostrar

o mais leve amuo

é preso,

e espancado,

e morto? (pp. 136-138).

 

Adianta tentar reconciliar oprimido com opressor?

 

Reconciliar

o oprimido com o opressor,

se este,

não cede uma linha,

continua a arrancar dinheiro

em nome do povo

e nem deixa o povo ver

a cor do dinheiro? (ibidem).

 

Como cultivar a alegria nas condições em que vivo?

 

Estas vendo, Senhor

como sem milagre

a alegria, este ano,

não brotará

da terra estorricada

e do chão

queimado de injustiça!? (ibidem).

 

E se o filho pródigo nem pensa em voltar para casa?

 

Senhor, o filho pródigo

não pensa em voltar.

Não está desempregado,

nem passando fome,

nem guardando porcos...

Teu dinheiro,

apesar de gastos loucos,

multiplicou-se.

Nem se lembra de Ti.

Nem sabe se existes! (ibidem).

 

Tu também não ficaste por vezes desanimado?

 

O demônio do desânimo e da tristeza

não investiu,

muitas vezes,

contra Ti?...

Quando Teus Apóstolos

não entendiam

parábolas simples

como a do Semeador;

quando insistiam

em discussões ridículas

para saber

quem o maior;

quando os Teus

te desafiavam

a fazer prodígios

e Te chamavam, com desprezo,

‘filho do Carpinteiro’;

quando Te acusavam

por andares

com publicanos e pecadoras

e Te chamavam

filho de Belzebu;

quando os mais íntimos

Te abandonavam,

traindo-Te,

negando-Te,

fugindo de Ti;

quando ficaste na Cruz

entre dois ladroes

e tiveste a impressão

de que o próprio Pai

Te abandonava

– que fazias,

como resistias

ao Mestre das intrigas

e Pai da mentira? (ibidem).

 

O interessante é que, apenas alguns meses antes, em julho de 1970 (talvez em circunstâncias mais favoráveis), Helder Camara escreve, de novo numa só noite, dois poemas que de certo modo contradizem e invalidam os poemas de março 1971. O silêncio de Deus, que tanto agonia o vigilante de março 1971, resulta ser, em última análise, falta de silêncio por parte de quem dEle se queixa.

 

No silêncio das árvores

Ainda há

o agitar dos ramos

movidos pelo vento...

No silêncio das águas,

ainda há

o marulho das vagas

ou o cantar da correnteza

atravessando as pedras...

No silêncio dos céus,

ainda há

o palpitar das estrelas,

carregado de mensagens...

Aprende

que não basta não falar

para atingires o silêncio.

Enquanto os cuidados te agitam,

ainda não penetraste

na área do grande silêncio.

E aí, somente aí

se escuta a voz de Deus! (Carta Circular 30-31/7/1970, V, II, pp. 40-41).

 

E, na mesma noite,

 

O ruído

que impede de ouvir

a voz de Deus

não é

de modo algum

o vozerio dos homens,

o trepidar das cidades

e, ainda menos,

o agitar dos ventos

ou o marulho das águas...

O ruído

que abafa de todo

a voz divina

é o tumulo interior

do amor próprio que estremece,

das desconfianças que se agitam,

da ambição que não dorme (ibidem).

 

 

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