Sob a tensão de Eros e Tânatos

08 de Noviembre de 2019

[Por: José Neivaldo de Souza]




“Temer o amor é temer a vida, e os que temem a vida já estão meio mortos” (Bertrand Russel)

 

Estamos passando por um momento de crise. Não falo só a partir de nossa realidade, é uma crise de humanidade. Chegamos no ápice de um projeto cujo objetivo é realizar na terra o paraíso celeste. Este paraíso, conquistado pela ciência e a técnica, daria ao ser humano o poder divino ou a soberania sobre todas as coisas. Parece absurdo, mas não é difícil de entender ao trazermos à nossa reflexão os maiores problemas da existência humana: a vida e a morte. Como interpretar a vida na perspectiva da morte? Como entender a morte sob a ótica da vida? 

 

Freud, ao ressuscitar da mitologia grega os mitos Eros e Tânatos” oferece maior compreensão acerca do funcionamento da psiquê humana. Para ele, há em nós, inconscientemente, a “pulsão” de vida (eros) e de morte (Tânatos). Vivemos e convivemos nesta dinâmica de poderes. Basta pouco para que os demônios da morte, entendida como destruição, atuem com mais força ofuscando o encanto da vida. A veiculação da ideia de que a vida se reduz à sua condição material já é o suficiente. O pensador grego, Aristóteles, fez bem ao observar que há duas classes de pessoas: as que poupam como quem nunca espera morrer e as que gastam como quem pensa que a vida lhe será tirada amanhã. Nascer, crescer, ganhar dinheiro, acumular riquezas, formar uma família, ou muitas famílias, ou nenhuma, sem refletir além do próprio umbigo, já é o primeiro passo para interpretar a vida, numa perspectiva de destruição.   

 

Esta redução leva ao atropelamento do outro: pessoas, natureza, a ideia real de Deus. O que importa é transformar tudo segundo os desejos mais íntimos e urgentes do indivíduo. Para que o “eu” viva, considerando o sentido mais limitado da existência, é preciso que o outro morra. Mas, quem é o outro? É o sujeito de direitos. O “eu” decreta que o “outro” representa uma ameaça. Então é preciso colonizá-lo, isto é, explorá-lo para que não tenha outro desejo a não ser o do colonizador. Quem são os pobres? Os negros? Os índios? O que é o desmatamento, a poluição das águas, do ar, o aquecimento global? Quem é Deus senão a projeção do desejo dos “eus” que “matam a viúva e o estrangeiro, e ao órfão tiram a vida”? (Sl 94, 6). 

 

Diante da reação do outro, o “eu” se pergunta no seu interior: quem teria coragem de executar o que planejo em meu íntimo? Um super-homem ou um Messias corajoso assumiria, em nome dos indivíduos e do “seu” Deus, esta missão. Todas as vezes que o super-herói age, é um regozijo pessoal, uma alegria para aqueles que se articulam na área mais perversa do inconsciente. O perverso se alimenta da ruina alheia.  O sentimento de ódio, ainda no campo virtual, quando se junta a outros “eus”, forma uma massa de “violentos” que se manifesta no real. Neste sentido, a vida torna-se um pesadelo, um tormento. O que resta à cultura? O mal-estar. Ou se contenta com o poder e a barbárie dos fortes, ou se reage em busca de uma solução que favoreça os direitos fundamentais à uma vida digna. 

 

A morte, entendida sob a ótica da preservação da vida, deixa de ser morte, é ressurreição. Eis a reação de um espírito que, mesmo preso à materialidade deste mundo, contempla outro reino possível. O “eros”, a “pulsão de vida”, ainda que traga a morte em seu seio, segue o curso natural. Ele se à racionalidade, à construção de valores que favorecem o bem-estar comum. Reagir às perversidades da destruição é trabalhar pelo sentido da vida. O poeta Mario Quintana diz que morrer de amor nos deixa mais vivos.  

 

O filósofo Jean-Paul Sartre só acredita no humanismo que reage ao inferno, ainda que isso custe a própria vida. Reação ao inferno onde são colocados os mais necessitados e desfavorecidos da sociedade; reação a todo tipo de preconceito e indiferença; reação a toda espécie de injustiça que, por conta do lucro e da riqueza, explora as matas, expulsa seus habitantes e destrói os rios e o meio ambiente. Reação aos que, em “nome de Deus”, se dizem donos da verdade e da alma das pessoas. 

 

É preciso uma nova interpretação sobre a ressurreição dos mortos. Os mortos são os que vivem neste mundo sem reação e conformados com o poder que lhes são impostos. Sem pretensão de heresia, me atrevo a dizer que Paulo é revisitado todas as vezes que a morte é ressignificada como lugar de reação da vida: “se os mortos não são ressuscitados, comamos e bebamos, porque amanhã morreremos” (1Cor. 15,32).

 

Para terminar, penso que é importante, confrontar os inimigos, arautos da destruição, principalmente os que habitam em nosso peito. É no confronto que aprendemos a dizer não e tomamos consciência de que todos somos irmãos e, por isso, dignos de direitos. Jesus, numa linda metáfora, disse: “se o grão de trigo cair na terra e não morrer, permanecerá só; mas se morrer produzirá muitos frutos” (Jo 12, 24). Nesta trilha, o sábio Chico Xavier resumiu em duas linhas o que eu tentei expor em todo o texto: “Gostaria de dizer para você que viva como quem sabe que vai morrer um dia, e que morra como quem soube viver direito”. 

 

 

Imagem: https://hezerleid.wordpress.com/2017/05/04/eros-y-tanatos-sobre-el-amor-y-la-muerte/ 

 

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