Não temos tempo de temer a morte

01 de Noviembre de 2019

[Por: José Neivaldo de Souza]




O problema da morte nos incomoda! É uma realidade colocada à nossa frente implorando uma solução. Como solucionar esta questão se já nascemos morrendo? Talvez por isso protelamos a nossa preocupação e nos convencemos de que é algo a ser resolvido num futuro distante. A morte tornou-se um tabu sobre o qual devemos nos calar ou negar. Esta negação, independente de nossa condição física, é uma reação do espírito face ao fatídico; tanto pode nos cegar quanto nos ajudar a simbolizar o que não tem sentido. Tenho pensado nas pessoas que, cansadas de suas enfermidades e consideradas “pacientes fora de possibilidades terapêuticas”, têm a morte como a última esperança. Como filósofo italiano, Nicola Abbagnano, considero a morte numa dupla perspectiva: primeiro, ela é um fato, pertence à ordem natural das coisas. Ela nos surpreende e, inexoravelmente, não temos o que fazer. Nesta dimensão puramente física, ela nos provoca terror e medo. Em segundo lugar, ela tem lugar em nossas reflexões como algo a ser trabalhado em nosso espírito com o objetivo de trazer tranquilidade e esperança. Muitas vezes a destituímos deste direito.   

 

O primeiro aspecto da morte. Ela é um fato natural.  É de bom tom aceitar a afirmação de Epicuro, pensador grego do século IV a. C. Em sua “Carta sobre a Felicidade” aconselha seus seguidores a não fugir da morte “como se fosse o maior dos males”. Epicuro não quer pensar a morte, a não ser como algo contrário à vida. Ele a nega relegando-a ao medo, por isso observa que ninguém pode saber o que ela é: “se existimos, ela não existe; se ela existe, nós não existimos”. Preferindo o prazer ao medo, ele nega que a morte, no útero da existência se nutre de vida. O sábio, para este pensador, alimenta a ideia segundo a qual “viver não é um fardo e não viver não é um mal”. Também nesta direção, Confúcio, sábio chinês, aconselhava seus discípulos a não se preocuparem com a morte, já que existem outros problemas mais urgentes a serem tratados e, um deles, é o da vida. 

 

O segundo aspecto da morte nos ajuda a pensá-la em relação à existência humana. A negação pode ser positiva na medida em que a significamos sem reduzi-la a uma catástrofe da existencial.  Numa perspectiva, mais espiritualizada, ela pode ser compreendida como início ou fim de um ciclo de vida. Platão a via como um bem, porta aberta para uma alma cansada, que não suporta mais as lamúrias e as dores do corpo; uma alma cheia de saudades e pronta para voltar ao princípio vital de todas as coisas e à moradia eterna projetada antes de todos os mundos. O pensador grego oferecia à teologia cristã que, mais tarde iria encontrar suas ideias, um campo simbólico pelo qual a fé poderia passear tranquilamente. A morte não é um mal. Se ela é o fim da existência física, na desordem sobrenatural é o início de um caminho a ser percorrido rumo à vida eterna. O problema da morte está em não permitir sua presença. Segundo Sêneca, filósofo romano, esta ideia se esvazia ao olharmos o nosso passado. Se olhássemos para trás veríamos que lá está a maior parte da morte.   

 

A Idade Média cultivou este “olhar para trás”. A fé cristã abraçou a filosofia grega possibilitando uma cultura mais piedosa e solidária frente à morte. Havia orações “pela boa morte” e, particularmente o moribundo, podia refletir sobre os seus dias e pensar a maneira como estava deixando este mundo. Aceitava, com convicção, que a morte é a última esperança. São Francisco de Assis, ao vê-la se aproximar, a chamou de “irmã” acolhendo-a com alegria: “bem-vinda!” A leitura do profeta Isaías não era estranha (Is 57,2): “Aqueles que andam retamente entrarão na paz; acharão descanso na morte”. O monge agostiniano, Martinho Lutero, procurava matar em si, todos os dias, o “velho homem” do qual falava São Paulo. O problema não era libertar-se da morte, mas aceitar a morte como libertação.   

 

Na Idade das luzes, no século XVIII, a sombra passou a ser temida e rejeitada. A morte, entendia como o reino das sombras, tornou-se uma realidade dramática. Voltada para a clareza das ciências, a objetividade da cura e da saúde na terra, rejeitaram a o paraíso celeste e consequentemente a morte como “passagem”. No sentido natural, a morte deveria ser vencida. Esta ideia avançou na Pós-modernidade que deu um jeito de inventar tecnologias capazes de prolongar ou abreviar a vida. Por outro lado, nesta cultura do descarte, presenciamos a banalização da morte. Convivemos facilmente com a perda do outro, mas não sabemos lidar com a própria morte. Maquiavel diria que “esquecemos mais rápido a morte do pai do que a perda de uma propriedade”. É comum vermos pessoas fazendo self com um acidente ou filmando um assalto ou assassinato e postando em suas redes.  

 

A morte não pode ser entendida somente como fim da existência, mas como início e fim de um ciclo. Ela se relaciona com a vida e nos provoca a transformar nossas atitudes. Se há o fator biológico, que nos deixa tristes pelas perdas de amigos, pessoas queridas e pelas ameaças às quais estamos sujeitos, há também uma interpretação, mais espiritual, que nos possibilita conversar com ela como a mais íntima das amigas. Afinal, diria Rubem Alves: “o que dá prazer e desprazer não são as coisas, mas as palavras que nelas moram”. 

 

Refletir, sem medo, sobre nossa própria morte, ajuda a ver o sofrimento e a dor do outro na ótica da compaixão. Palavras de medo, geram medo e palavras de esperança geram esperança. Pelo medo, velhos, doentes e marginalizados são excluídos da vida produtiva, mas pela esperança são resgatados. A morte implica, metaforicamente a ressurreição: “os cegos enxergam, os mancos caminham, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados e a boa notícia é anunciada aos pobres” (Mt 11,5). 

 

Imagem: https://almikasanacion.wordpress.com/2011/02/02/el-sentido-de-la-muerte/ 

Procesar Pago
Compartir

debugger
0
0

CONTACTO

©2017 Amerindia - Todos los derechos reservados.