Ecoteologia: literatura e canção

27 de Setiembre de 2019

[Por: Emerson Sbardelotti]




Somos uma só coisa: Terra e Humanidade! 

 

Qual será o destino da humanidade? Qual será o destino de nossa Mãe Terra, nossa única Casa Comum? Se temos a Terra nas palmas de nossas mãos, porque a estamos devastando? O que é finalmente o ser humano, ele tem jeito? Somos a porção consciente da Terra? 

 

Perguntas que respondo através da Literatura em diálogo com a Teologia, com a Ecoteologia da Libertação, a partir da análise de uma letra de canção popular, com ênfase em uma preocupação comum: quando os seres humanos contaminam a natureza, tudo isso é um pecado contra nós mesmos e contra Deus. Procuro mostrar como tal canção ajuda a perceber as raízes éticas e espirituais dos problemas ambientais, nos convidando a uma mudança de comportamento, a uma mudança profunda enquanto seres humanos. É claro que não tenho todas as respostas e não encerro o assunto aqui; há outras canções e uma vasta literatura.

 

Antonio Manzatto1 argumenta:

 

A teologia não precisa temer encontrar-se com esse homem. Encontrá-lo lhe permitirá refundar seus próprios temas, partindo da Revelação, para incidir em todas as dimensões da vida concreta dos cristãos. A teologia enquanto ciência tem suas fontes, seus métodos, seus sábios, seus princípios. Sua base principal é a Revelação, Palavra de Deus que é a alma mesmo da teologia. Os teólogos devem descobrir as maneiras mais aptas para comunicarem-se com os homens contemporâneos, a fim que a Revelação lhes seja compreensível. O teólogo deve ser um homem de seu tempo, deve adaptar-se ao processo das ciências e fazer suas pesquisas integrando as novas descobertas científicas. A teologia é uma ciência. A literatura é uma arte. Querer refletir sobre as relações entre teologia e literatura pode parecer alienação diante de um mundo atravessado por conflitos. Entretanto, se a literatura é uma arte, ela não nos separa necessariamente da realidade do mundo. Por sua natureza, a literatura, como arte, é um fato de civilização, condicionada por seu meio. Ela revela uma mensagem, e revela também a personalidade de seu autor, sua sociedade. A literatura revela mais que sua mensagem declarada, como o fazem todas as artes. Se a literatura é influenciada por seu meio, ela exerce também uma influência sobre as pessoas, sobre a sociedade à qual ela é dirigida ou com a qual ela dialoga. Há aqui uma interação dialética de influências. A literatura não nos separa do mundo, mas, ao contrário, pode colocar-nos em relação mais direta com ele. A literatura refere-se ao mundo não como as ciências o fazem, mas sim por imagens e símbolos. Ela é uma representação do mundo, ela apresenta uma cosmovisão: ela é um olhar sobre a realidade, as coisas, os homens, os sonhos humanos; ela é também um julgamento de valor, ainda que não formalmente, e revela valores vividos pelos homens; ela mostra uma compreensão do homem, ela fala sempre do homem, apresenta-o, critica-o, mostra o homem vivendo. Sua ocupação é sempre o homem, o homem concreto, situado. Neste sentido, ela é antropocêntrica. A teologia, que fala quem é Deus para o homem, deve ser capaz, segundo sua missão, de anunciar a boa nova do Evangelho de salvação e de libertação para esse homem sem, com isso, descaracterizá-lo. A teologia, por sua vez, não precisa temer encontrar-se com esse homem. Ao contrário, esse encontro permitir-lhe-á reapresentar suas questões e reencontrar seus próprios temas, aprofundando sua reflexão sobre Deus e evidenciando certos aspectos da Revelação que, mesmo se não constituem novidades para o conhecimento teológico, podem encontrar-se, talvez, um tanto esquecidos na reflexão teológica atual” (MANZATTO, 1994, p. 05-11).

 

A análise da letra leva-nos a entender que antes mesmo da palavra ecologia estar na moda, ser divulgada como hoje, já havia uma intuição, um alerta de que algo poderia dar errado no presente e no futuro. De certa forma, se tornou profecia esteticamente hodierna; talvez, tenha passado despercebida na época em que foi composta, porém, o grito da Terra e o grito dos pobres já ecoam por ela. 

 

A conscientização que germina da letra de uma canção jamais é neutra. Remete a um processo de escuta da criação e de educação para a liberdade. Parafraseando Paulo Freire: uma educação que conscientiza o ser humano, permitindo que ele, ao invés de acomodar-se à sociedade e por ela deixar-se subjugar, adquira uma consciência transitiva crítica, tornando-o responsável, capaz de dialogar, compreender e integrar-se com o mundo de forma criadora; só assim, será de fato, verdadeiro sujeito de sua própria existência. 

 

É preciso atender o convite urgente do Papa Francisco para renovarmos o diálogo sobre a maneira como estamos construindo o futuro do planeta. Precisamos de uma solidariedade universal. O nosso futuro está conectado ao cuidado e ao respeito; a uma nova forma de dialogar com a natureza, um novo modo de experimentar Deus. 

 

É o novo paradigma: tudo está interligado como se fossemos um nesta Casa Comum. Somos uma única entidade sagrada: Humanidade e Terra! 

 

Até quando ficaremos sobre a natureza e não com a natureza? Até quando consideraremos a Terra como algo inerte e sem propósito? Porque é tão difícil enxergar a Terra como Mãe, cheia de vitalidade? 

 

De esperança em esperança, poderemos garantir um futuro bom para a Terra e para nós. O futuro está em nossas mãos!

 

Para Leonardo Boff2

 

Nunca a espécie humana correu um risco tão grave. Ela pode ser destruída ou pela máquina de armas letais que criou ou pela convulsão do Planeta Terra que, pelo aquecimento global, mostra não poder suportar mais a devastação que está sofrendo pela cultura produtivista e consumista. Ou mudamos nossa relação para com a Terra e seus ecossistemas ou grande parte da vida, inclusive a vida humana, pode desaparecer. Gritam os pobres, gritam as florestas, gritam os animais, gritam as águas, grita a Terra inteira. A ecologia é uma arte e uma técnica de escutar esses muitos gritos e inventar um novo tipo de relacionamento para com a natureza e a Mãe Terra, fundado no cuidado, na responsabilidade, no respeito e numa sobriedade compartida. Só assim salvaremos nossa única Casa Comum, a nossa vida e nossa civilização humana. Gritam os pobres sob pesada carga de opressão econômica, de discriminação social e de violência direta das guerras “inteligentes” modernas. Gritam as florestas, abatidas em todas as partes do mundo sob a voracidade produtivista, pois no lugar de árvores frondosas e centenárias pasta o gado para carne de exportação. Gritam os rios contaminados pelos agrotóxicos da monocultura da soja, do fumo, dos cítricos e outras. Gritam os solos contaminados por milhões de toneladas de pesticidas. Gritam os ares envenenados por gases de efeito estufa. Gritam as espécies, dizimadas aos milhares a cada ano. Gritam inteiros ecossistemas devastados pela superexploração de seus bens e serviços. Grita a humanidade inteira ao dar-se conta de que pode ser exterminada da face da Terra por dois tipos de bombas: pela bomba das armas químicas, biológicas e nucleares e pela bomba ecológica representada pelo aquecimento global, que não acaba e aumenta ano após ano. Um dos propósitos deste livro é fundar uma firme esperança de que não estamos no caminho de uma catástrofe inevitável e irrefreável. Estamos, sim, no coração de uma crise civilizatória de magnitude planetária. Toda crise acrisola, purifica, tira o que é agregado e acidental e libera o cerne vigoroso, que pode dar origem a uma vida renovada e melhor. As dores do tempo presente não são aquelas de um moribundo diante da morte, mas de um parto que gera uma nova vida. Abraçando o mundo, estaremos abraçando o próprio Deus (BOFF, 2015, p. 07-11).

 

Antes mesmo que se discutisse sobre ecologia no Brasil, a Música Popular Brasileira, com a dupla Roberto Carlos e Erasmo Carlos já se antecipava em torno da questão. Eles compuseram, e aqui citamos apenas aquelas que hoje ressurgem com grande relevância ecoteológica e estão em sintonia com o Sínodo para a Amazônia: O Progresso (1976); Panorama Ecológico (1978); O Ano Passado (1979); As Baleias (1981); Águia Dourada (1987) e Amazônia (1989).

 

Roberto Carlos e Erasmo Carlos3 já tratavam da questão com uma denúncia estética e poética. Em O Ano Passado apresentam pela primeira vez a palavra ecologia numa canção popular. A dupla fez a sua parte no difícil trabalho de conscientização socioambiental. O profetismo presente na canção, passados 40 anos, mesmo com as pequenas vitórias e curtos passos que foram dados na direção à defesa da Vida em sua plenitude, continua atual. O preocupante desta situação, é que a Terra está gritando. Até quando iremos ficar inertes e fecharemos nossos ouvidos a estes gritos, que são também os gritos dos pobres? 

 

Vamos à letra:

 

O ouro no ano passado subiu sem parar

os gritos na bolsa falaram de outros valores

corpos estranhos no ar

silenciosos voadores

quem sabe olhando o futuro do ano passado

o mar quase morre de sede no ano passado

os rios ficaram doentes com tanto veneno

diante da economia

quem pensa em ecologia4

se o dólar é verde, é mais forte que o verde que havia

 

o que será o futuro que hoje se faz

a natureza, as crianças e os animais

 

quantas baleias queriam nadar como antes

quem inventou o fuzil pra matar elefantes

quem padeceu de insônia

com a sorte da Amazônia

na lei do machado mais forte do ano passado

não adianta soprar a fumaça do ar

as chaminés do progresso não podem parar

quem sabe um museu no futuro

vai guardar em lugar seguro

um pouco de ar puro, relíquia do ano passado

 

o que será o futuro que hoje se faz

a natureza, as crianças e os animais

 

os campos risonhos um dia tiveram mais flores

e os bosques tiveram mais vida e até mais amores

quem briga com a natureza

envenena a própria mesa

contra a força de Deus não existe defesa

 

o que será o futuro que hoje se faz

a natureza, as crianças e os animais (CARLOS. CARLOS, 1979).

 

A letra de O Ano Passado nos apresenta uma denúncia realista, colocando o dedo na ferida. A pergunta de fundo fica em nossa mente martelando: “O que será o futuro que hoje se faz...a natureza, as crianças e os animais”?

 

Os seres humanos fazem parte da natureza. Portanto, não basta apenas defender as florestas e os animais, é preciso também defender a melhoria concreta da qualidade de vida das populações. Defender a natureza não se resume apenas em buscar um novo relacionamento de nossa espécie com o planeta, mas principalmente em buscar um novo relacionamento entre os próprios seres humanos. As relações humanas são dominadas por estruturas extremamente injustas, nas quais uma minoria possui todas as riquezas e os meios de produção, enquanto a maioria da população vive na miséria, passa fome, sem as mínimas condições de vida. As relações que causam essa superexploração dos seres humanos são as mesmas relações que superexploram os recursos do planeta.

 

Até o presente momento, pensou-se o futuro do planeta e do Brasil a partir do crescimento do Produto Interno Bruto, com o aumento constante e sem limite da máquina industrial em todas as frentes, mas com a intensificação do agronegócio, que não é tudo, não é top, nem pop, mas tóxico. Vem à tona a consciência de que caminhamos para situações pesadamente inviáveis, já não só para nosso povo, mas para toda a humanidade. Três desafios se impõem: 1. O desequilíbrio mundial no que se refere às condições de vida dos continentes e países; 2. A instabilidade climática e, 3. A impossibilidade de manter os recursos imprescindíveis da Terra. A Terra já não consegue se refazer em grau suficiente para garantir a vida humana. Está em fase de esgotamento, com risco para toda vida. Acrescente-se aí o aumento de temperatura, fruto também desse mesmo movimento de destruição da natureza e dos crescentes tipos de poluição, principalmente o industrial. 

 

Porém, ainda há tempo de revertemos toda esta situação, nos reeducando ambientalmente, socialmente, culturalmente, artisticamente. Respeitando, dialogando, indo ao encontro de formas de preservação. Há dois olhares sempre inquietantes que nos impulsionam: o olhar o mundo a partir dos olhos de Deus e entender, portanto, o que é de fato a Criação; e o olhar através da poesia: aquela construção profética e poética cheia de vigor e coragem para dizer ou cantar o que de fato não deve mais ficar escondido, nem oculto, mas ser mostrado.  

 

É estar interligado, conectado nesta Casa Comum! Nossa única Casa Comum!

 

 Emerson Sbardelotti é Doutorando e Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

 

Citas:

 

MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: Reflexão teológica a partir da Antropologia contida nos Romances de Jorge Amado. São Paulo: Edições Loyola, 1994.

2 BOFF, Leonardo. Ecologia: Grito da Terra, Grito dos Pobres – Dignidade e Direitos da Mãe Terra. ed.rev.amp. Petrópolis: Editora Vozes, 2015.

3 CARLOS, Roberto; CARLOS, Erasmo. O ano passado. Intérprete: Roberto Carlos. In: ROBERTO CARLOS. Roberto Carlos. São Paulo: Sony, 1979, 1 CD, faixa 3.

4 Grifo nosso.

 

 

Imagem: Arte-Vida: Ateliê 15

 

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