Arte, coisa de vagabundo?

22 de Agosto de 2019

[Por: José Neivaldo de Souza]




Há um mês o atual presidente do Brasil deu uma declaração dizendo não admitir que, através da ANCINE (Agência Nacional de Cinema) ou via Lei Rouanet, se aprovassem projetos culturais contrários aos interesses da tradição judaico-cristã. O seu discurso declara a intenção de controlar a produção artística e censurar a arte que não condiz com os seus interesses. A transferência do Conselho Superior de Cinema para a Casa Civil, no dia 18 de julho de 2019, foi uma forma de garantir o cerceamento. A minha pergunta é simples: Qual é a arte condizente com a moral judaico-cristã? Eu busco esta resposta. 

 

Arte é uma atividade humana cujo objetivo é despertar a inteligência e o sentimento para a beleza. Ela expressa ideias e desperta emoções. Logo, a arte se apresenta sob dois caminhos distintos, porém interativos. Em primeiro lugar, ela expressa pensamentos que favorecem o diálogo e a  união entre pessoas. Em segundo lugar, ela é entretenimento, tem a função de divertir e levar leveza à vida. De um lado, ideias; do outro, emoções. Para simplificar, a arte não é para ser compreendida, mas para ser degustada. É sob estes aspectos que entendo a arte. 

 

Enquanto pensamento, ideias, o artista mergulha no mundo complexo do intelecto e, como um garimpeiro, peneira as pedras preciosas. Sente prazer em descobrir a beleza entre pedregulhos. A música, a Dança, a Pintura, a Escultura, a Literatura, o Teatro e o Cinema falam de um mundo escondido que, por liberdade e esforço, o amante da arte o tornou revelado. O filósofo Henri-Frédéric Amiel dizia que a beleza de uma paisagem é reflexo da beleza da alma. De uma alma livre de influências externas e internas. Para ele, esta liberdade deve partir do zero a fim de fazer desaparecer a individualidade para não ter do que se defender; mergulhar no desconhecido sem ter que se responsabilizar por nada ou ninguém. Rubem Alves provavelmente concordou com isso ao falar da arte dos poetas, “aqueles que, em meio a dez mil coisas que nos distraem, são capazes de ver o essencial e chamá-lo pelo nome. Quando isso acontece, o coração sorri e se sente em paz. Encontrou aquilo que procurava”.1

 

Emmanuel Kant observara que a função da arte é expressar ideias morais, isto é, ela deve revelar pensamentos que ajudem as pessoas a se unirem pelo bem-estar universal, um princípio racional que governa a vontade.2 A arte não pode ser somente um entretenimento. 

 

A arte, enquanto entretenimento, desperta o sentimento, as emoções. Os nossos sentidos são arte, transformam a natureza sem destruí-la, possibilitam prazer e alegria. Ao escutar uma música, contemplo o belo e, como se fosse uma comida saborosa, quero repetir o prato. Concordo com Rubem Alves: “A sonata, toda vez que é repetida – a magia acontece de novo. A beleza deseja voltar”.3 A arte, como entretenimento, se dá aos sentidos acordando a alma. Amiel era também poeta. Para ele, a arte causa impacto nas pessoas fazendo muitas coisas acontecerem: “mistérios ficam claros; o opaco torna-se evidente; o complicado, simples; o provável, necessário. O verdadeiro artista sempre simplifica”.

 

A arte não é só pensamento ou só entretenimento, é o encontro; diversidade na unidade; é diálogo! São caminhos que se cruzam. Sem sentimento, o pensamento é obtuso; sem pensamento, o sentimento é mero entretenimento, não passa de diversão para suprir a necessidade de se distanciar dos problemas. 

 

Diante das declarações do presidente, que arte ele deseja controlar? Provavelmente não é a arte favorável ao diálogo e à união, como escreveu Leon Tolstoi: “a arte é um dos caminhos para a unificação dos povos”. Pelo que parece, A arte deve ser útil para manter distraída a massa que se contenta com produções medíocres em nome da “tradição judaico-cristã” que o presidente tem na cabeça. O Deus censurador e cerceador da arte e das liberdades não é cristão. Talvez ele não saiba que a beleza é coisa de artista e não de políticos submissos e prisioneiros dos partidos ou do senso comum. O artista que entendeu a arte, nesta perspectiva, é revolucionário. Talvez seja esta rebeldia do espirito que assusta o presidente do Brasil. 

 

Citas
 
 ALVES, Rubem. O Retorno e Terno. 8ª. Ed. Campina: Papirus, 1996, P. 78. 
2 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Lisboa: Edições 70, 2001. 
3 ALVES, 2010, p. 207. 

 

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