Sonhos não morrem

09 de Mayo de 2019

[Por: José Neivaldo de Souza]




O sonho encheu a noite

Extravasou pro meu dia

Encheu minha vida

E é dele que eu vou viver

Porque sonho não morre 

(Adélia Prado)

 

Os pesadelos têm me angustiado. Na minha comum interpretação, eles expressam as imagens de um real que nos mete medo e nos apavora. Eles existem e nos comunicam a falta de horizonte, de caminho e de utopia. Os fantasmas que os povoam jamais dormem, são perturbadores da paz e da tranquilidade.  Pergunto pelos sonhos de juventude nos quais as coisas que não existem são mais admiradas e nos enchem de esperanças. Ah... escreveu Paul Valéry: “o que seria de nós sem o socorro das coisas que não existem?”, sem a utopia que aponta o horizonte e fortalece a alma.  

 

Eduardo Galeano, pensador uruguaio, comentara que, numa conferência aos jovens, surgiu uma pergunta, talvez a mais difícil de ser respondida: para que serve a utopia? Seu colega de mesa, um cineasta argentino, tomou a palavra e respondeu que a utopia está no horizonte e quanto mais a perseguimos, mais ela nos foge; por mais que caminhemos em sua direção, jamais a alcançaremos. Diante da perplexidade dos alunos ele respondeu: “serve para que eu não deixe de caminhar”. A utopia, como os sonhos, suscita perguntas e nos incita a continuar o trajeto da vida. E, por mais inatingível que ela seja, “o que importa não é a partida e nem a chegada, mas a travessia”, como bem nos lembra Guimarães Rosa. 

 

Há sonhos carregados de utopia. Eles ajudam a acordar e a mudar de rumo. Tenho em minhas mãos uma obra de fiódor Dostoiévski, acabei de ler: “O Sonho de um homem ridículo”. É uma narrativa fantástica! Inicia-se com a frase: “eu sou um homem ridículo”. Andando pelas ruas de São Petersburgo, um homem pensa sua existência e, num absoluto niilismo, não vê sentido em nada. Aos seus olhos, tudo passa a ser indiferente. Num determinado momento, ao olhar para o céu, contempla uma estrela, mas vem à mente uma ideia, antiga e persecutória, de acabar com a própria vida. Perdido em pensamentos, uma menina puxa o seu braço em busca de socorro, mas ele a ignora e segue em direção ao seu propósito. 

 

Entra em seu quarto. Há uma vela sendo consumida pelo fogo. A imagem da menina que, provavelmente pedia ajuda para a mãe, o persegue. Pega a arma carregada e, consciente de que nada vale a pena, a aponta para a cabeça. Mas... como fica a consciência diante de alguém que implora por socorro? O que fazer com a vergonha de não amparar uma pessoa desesperada? Nada disso interessa! O cansaço físico o faz adormecer ali, na cadeira, com o revolver na mão. Os pensamentos reais se transformam em sonho no qual ele tira a própria vida com um tiro no coração. Consciente, percebe tudo ao redor até à sua sepultura. 

 

Sob a terra, começa a contar as gotas d’água que caem da fresta do caixão. De repente surge uma entidade que o leva à uma viagem celestial. Pousa num planeta semelhante à terra, mas diferente no que diz respeito aos seus habitantes. São pessoas felizes, amam, não se preocupam com o sentido da vida, pois a vida é o próprio sentido. Para eles não importa o “saber” viver, mas viver plenamente. A natureza é considerada e respeitada e os seres prezam pela verdade e a justiça entre eles. O ridículo contempla aquele paraíso que “deu certo”, mas habituado com a terra, espalha mentiras entre as gentes e tudo começa a se corromper: nasce o orgulho, a dor, a injustiça, o ódio, o crime e a morte. Para lidar com a nova realidade, inventam a ciência, a Justiça, as leis, o cárcere e a guilhotina. 

 

Desperto do sono, e do sonho, o ridículo se espanta. Olha para o revólver e o afasta decidindo-se pela vida. Decide anunciar a verdade. Sai à procura da menina com a certeza de que, para amar os outros é preciso amar a si próprio. Um sonho! Mas, o que é um sonho? Responde o autor: “Não importa que isso nunca se realize e que não haja o paraíso”. O mais importante no caminho da vida é: “ame aos outros como a si mesmo”. 

 

O jardineiro e construtor de paraísos, Rubem Alves, escreveu: “todo jardim começa com um sonho de amor. Antes que qualquer árvore seja plantada ou qualquer lago seja construído, é preciso que as árvores e os lagos tenham nascido dentro da alma. Quem não tem jardins por dentro, não planta jardins por fora e nem passeia por eles”. É assim, os sonhos nos revelam um outro reino possível, uma utopia. E mesmo que não a alcancemos completamente, vale a pena os aperitivos de felicidade que provamos durante o caminho.  

 

 

Imagem: https://www.periodistadigital.com/religion/opinion/2017/09/03/opinion-frei-betto-si-ya-no-alberga-suenos-de-un-futuro-mejor-ni-se-inyecta-utopia-en-vena-le-robaron-la-esperanza-iglesia-religion-dios.shtml 

 

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