Gula: um demõnio a ser expulso

07 de Marzo de 2019

[Por: José Neivaldo de Souza]




“Nenhuma escravidão é mais vergonhosa do que a voluntária” (Sêneca)

 

As palavras do filósofo romano, em sua Carta a Lucílio, apontam uma realidade: a pior escravidão é aquela que, consentida por nós, nutre nossas ações e justifica nosso pensamento. A gula, no campo da saúde, é uma paixão escravizante.  Mahatma Gandhi, líder indiano, falou sobre isso em O Caminho da Paz. Para ele e fundamental que o paladar seja controlado em prol de uma saudável e feliz. Como controlar a gula? O propósito desta reflexão é observar a fome no mundo e nossa postura diante da alimentação; trabalhar a consciência para a crítica, à luz da fé cristã, e propor uma disciplina de mudança de vida. 

 

O relatório da ONU para a alimentação e agricultura (FAO) registra, por ano, um aumento de quase 6 milhões de pessoas no mapa mundial da fome. Hoje, há quase um bilhão de subalimentados devido a guerras, crise econômica, secas, enchentes e, não podíamos deixar de ressaltar, o desperdício e a gula.  

 

A gula não é só o ato de comer demais, ela é uma “obsessão” por comida. Não se come só com a boca, mas com o pensamento e os olhos. Compramos, estocamos, deixamos estragar e descartamos o alimento que sobra em nossa mesa. Se juntássemos as “sobras” em todo mundo, daria para alimentar milhões de pessoas, mas o problema não é esse e sim em não comer mais que o essencial ao nosso organismo. A gula é ultrapassa o desejo de matar a fome.

 

Uma consciência crítica, à luz da fé, pode nos ajudar a enxergar esta realidade e adotar uma disciplina de autocontrole perante o “pão nosso de cada dia”. A Bíblia trata a glutonaria como pecado, um vício prejudicial à saúde. Em A Divina Comédia, Dante Alighieri descreveu os glutões como escravos da comida e bebida e os colocou no inferno, pois transformaram o ato sagrado de comer em orgia alimentar. 

 

O livro de Números (11,4-35), no Antigo Testamento, narra o pecado de Israel. No deserto do Sinai, eles se enjoaram do maná e reclamavam da falta de carne. Moisés se entristeceu, pois, ainda que matasse todos os animais e pescasse todo os peixes do mar, não os saciaria. A ira de Deus se voltou contra eles e prometeu que iriam se empanturrar, até sair pelo nariz e enjoarem. O Senhor fez cair codornizes por todo o acampamento e eis que o povo começou comer demais e a estocar até estragar a carne. O Senhor feriu com uma praga mortal os que foram tomados pela gula. O autor de Provérbios (23,2) recomendava: “mete uma faca à tua garganta, se és uma pessoa glutona”. 

 

Jesus, no início de seu ministério, propôs a prática do jejum como forma de reagir às paixões e expulsar o demônio gula. Após ter jejuado quarenta dias e quarenta noites, ele teve fome. O demônio o provocou para que transformasse pedras em pães. Ele disse: “Nem só de pão viverá o ser humano, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,2-4). A palavra hebraica para demônio é Satan e tem sua raiz no verbo impedir, prender, escravizar. Satan submete a si o fluxo da saúde. Paulo escreveu aos Filipenses (3,19) referindo-se à ação satânica de submissão ao “deus estômago”. 

 

A comida pode ser objeto de posse e de gula, mas também pode ser símbolo de libertação e comunhão. Lucas (24,28-31) relata que Jesus, após sua morte, apareceu no caminho de Emaús e partiu o pão com os dois discípulos. Eles estavam tristes, desanimados e sem esperança. O rabino Nilton Bonder em sua Cabala da Comida associa a palavra “pão” à “batalha”. No momento da comida se trava sérias batalhas: há a tentação de devorar mais que o necessário à saúde versus o jejum em favor da comunhão e da partilha. O ato de comer não se inicia na alimentação, mas numa decisão de amor.

 

É preciso uma disciplina de autocontrole e mudança de vida. Para Gandhi todos os sentidos serão controlados se controlarmos o nosso paladar. Como controlar a gula? Primeiro: ter autocontrole. Sêneca havia proposto ao seu amigo Lucilio: “fazer um exame de consciência e repreender a si mesmo”. A comida deve ser digerida com consciência em ralação à fome do mundo. Segundo: elaborar uma dieta em que “comer para viver” supera o “viver para comer”. Dieta, do grego "Diaita”, quer dizer: “modo de via”. Urge uma atitude frente à alimentação que combata o desperdício, a começar no próprio prato. 

 

Leon Tolstoi, em Pensamentos para uma vida feliz diz: “Nossas paixões são os tiranos mais terríveis”. De fato! Quando a ela nos submetemos perdemos a autonomia e a liberdade. É pela vontade que controlamos as paixões e nos libertamos de suas algemas. Em uma sociedade, onde comer muito é sinal de saúde, urge uma mudança de pensamento e de hábito em relação a este novo “modo de vida”: combater a gula e viver em comunhão. 

 

Imagem: https://www.animalgourmet.com/2014/04/30/el-paraiso-de-la-gula-y-la-lujuria/ 

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