O pior cego

27 de Setiembre de 2018

[Por: José Neivaldo de Souza]




Hoje escutei de alguém, um velho ditado: “o que os olhos não veem o coração não sente”. Não vejo coerência nesta proposição! Será que a causa dos sentimentos está nos olhos? Se for assim, o que sente um cego de nascença? Minha reflexão não se limita à dimensão física do olhar, mas a transcende. Quero enxergar com os olhos do infinito a beleza das coisas me cercam. Brinco com as palavras: os olhos veem o que o coração sente. Como contemplar o mundo visível e o invisível? Se para fazer isso eu tenha que depender somente dos meus olhos, então minha visão de mundo é muito limitada e uma águia é mais precisa ao admirar o seu mundo, mais vivo e colorido.

 

Lembro das palavras de Saint Exupéry: “Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos”. É preciso nascer do Espírito (Jo 3,6) para compreender estas palavras. É do coração que surge o nosso olhar. A partir dele, um cego é capaz de ver e contemplar as maravilhas de um mundo possível. A partir do coração, de sentimentos bons ou maus, determinamos nossa relação com as pessoas e com a sociedade que construímos. O Filósofo Blaise Pascal foi feliz em dizer: “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. Estas razões podem ser sublimes ou enganosas e, como escreveu o autor de Provérbios (4,23), podem formatar a maneira de enxergar e viver neste mundo. Em outras palavras: Ele pode “ser enganoso e sua doença incurável” como profetizou Jeremias (17,9) ou “pacífico capaz vivificar o corpo”, como ensinou Provérbios (14,30).  

 

Um coração enganoso reflete o engano, a perversão. Iludido, acha que sua visão da realidade é a melhor do mundo. Incapaz de autocrítica, não aceita dialogar a não ser “consigo mesmo”. Procura, como um Messias, converter tudo e todos à sua verdade fazendo com que se encaixem ao seu vislumbre. Não tem consciência da própria ignorância e, apesar dos olhos abertos, nada enxerga senão as próprias certezas. Sua falta de visão crítica obscurece a razão, abrindo as portas ao fanatismo, prato cheio para quem vive de uma crença baseada no medo, na dúvida e na ingenuidade. Este tipo de coração produz uma patologia que, numa perspectiva crítica e crística, revela o que de fato é um “cego guiando outro cego”. O resultado? Sabemos qual é: “ambos cairão na cova” (Mt 15, 14).  

 

Para Santo Agostinho o pior cego é quem se gloria da própria cegueira. Um coração, orgulhoso da própria cegueira, “leva o mundo às trevas”, como dizia o líder indiano Mahatma Gandhi. 

 

Um coração sublime e puro inclina-se ao bem e se volta para o essencial. Deve ser por isso que o salmista, num pedido de súplica, eleva-se a Deus: “cria em mim um coração não contaminado e renova em mim um espirito decidido” (Sl 51,10). Leio o evangelho de Mateus! O que contamina o ser humano nasce do coração (Mt 15,11-18). Vale a pena refletir sobre a palavra “contaminar” que muitas vezes é colocada no sentido de “perverter”. O salmista pede ao Senhor um coração que respeite as diferenças; que considere os mais aviltados; que se doe aos oprimidos e ame incondicionalmente. Um coração que não “perverta” a vida. 

 

As palavras de Jesus ressoam ainda hoje nas igrejas e em nossa cultura cristã. Um coração dividido enxerga o seu rebanho na mesma medida em que se enxerga: como uma massa de manobra a ser manipulada e alienada em nome do próprio poder. Devemos separar a Igreja idealizada por Jesus da Igreja dos eclesiásticos, sacerdotes e pastores que de forma perversa fazem de seu rebanho uma extensão do poderio político-econômico. São líderes dos quais disse Jesus (Mt 7,15): “Acautelai-vos, porém, dos falsos profetas, que vêm até vós vestidos como ovelhas, mas interiormente são lobos devoradores”.

 

Uma igreja, cujo líder cultiva um coração reto, favorece coragem, confiança e sabedoria a seus fiéis. É capaz de reagir aos preconceitos e prejuízos; procura, em primeiro lugar, os próprios defeitos antes de acusar os defeitos alheios. Tenho pensado, e muito, nas palavras do Mestre que, como sementes, são plantadas em meu coração: “aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29b). Senhor, que o meu olhar enxergue o seu reino de justiça e que eu não perverta a sua verdade.

 

 

Imagem: https://airtonmgusmao.wordpress.com/2016/03/03/e-preciso-ver-com-o-coracao/ 

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