29 de Agosto de 2018
[Por: José Neivaldo de Souza]
Somos as coisas que moram dentro de nós. Por isso, há pessoas tão bonitas, não pela cara, mas pela exuberância de seu mundo interior.
Rubem Alves
Tenho pensado sobre o verso bíblico no qual Jesus responde aos fariseus sobre o mandamento do amor. O texto diz que um dos fariseus, especialista em leis, colocando Jesus à prova, o indagou sobre o maior mandamento da lei. O Mestre, percebendo sua malícia, respondeu: “’Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento’. Este é o primeiro e maior mandamento. O segundo é semelhante a ele: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas" (Mt 22,35-40).
Chama atenção o segundo mandamento, semelhante ao primeiro: “ame ao próximo como a si mesmo”. A ideia parece absurda, se considerarmos que a condição para amar o outro é amar a si mesmo. Numa sociedade onde se cultiva a ideologia do “amor próprio” perguntamos sobre o tipo de amor, mencionado pelo Mestre. Seguramente não é o “amor próprio” que leva ao egoísmo e ao narcisismo, mas à alteridade. "O filósofo francês Jean-Paul Sartre, em seu humanismo, observara que o ser humano é aquilo que ele faz de si mesmo. É na relação consigo mesmo que a pessoa define o seu destino. “O amor próprio” pode salvá-la ou condená-la, dependendo de como ela o toma. A relação do “Eu” consigo mesmo é fundamental para este discernimento. Platão, no século IV antes da Era Cristã, diria que o “mover a si mesmo” é o passo mais importante da vida.
O “si mesmo” é fundamental nas relações. Portanto, conhecer a si mesmo é condição para que o “Eu” conheça e se relacione com o próximo e com mundo que nos rodeia. É importante a autoconfiança! Sem acreditar em si mesmo, em seu potencial, inteligência, sentimentos e emoções, a pessoa se perde no caminho e se torna incapaz de enxergar o horizonte que almeja. Em O Homem à procura de si mesmo, Rollo May observara que a missão mais importante do ser humano é gerar a si mesmo e revelar sua potencialidade.
Do ponto de vista cristão não basta o “amor próprio”. Sabendo de suas limitações, mas também de sua capacidade de transcendência, a pessoa humana busca vencer a si mesmo transbordando amor. Sobre isso escreveu Adolphe Gesché em o Sentido: “Nós nos afirmamos e confirmamos à medida que procuramos sempre para além mesmo do que já nos é dado. Somos desta terra, mas isso mesmo supõe uma flecha de transcendência”1. Esta autoconfiança só é importante na medida em que o ser humano se descobre como “ser criado” e não causa de si mesmo; é alguém que se indaga e, ao percorrer um caminho, pergunta pela partida e a chegada. O ser humano, como bem escreveu A. Gesché: “voltado sobre si e em sua clausura, não está pronto para sua própria chegada”2.
O segundo mandamento é semelhante ao primeiro. O “Eu” humano, numa perspectiva cristã, é um ser que interioriza, isto é, é um ser que aprende de fora a relação de amor a si mesmo. Eu amo a mim mesmo e ao outro. Este aprendizado me vem da certeza de que fui “visitado” e considerado em minha pequenez, como testemunhou João (1 Jo 4,19). Sem o amor a si mesmo, espelho do amor de Deus por nós, é impossível amar os outros e mundo que nos cerca; sem este amor, o “Eu” se vê isolado, atolado no egoísmo e na falta de sentido. Enganando a si mesmo, o “Eu” se percebe odioso e, como diria Paul Valéry: “se o ‘eu’ é odioso, amar ao próximo como a si mesmo torna-se uma atroz ironia”.
Refletir sobre os mandamentos, apresentados por Jesus aos fariseus, nos ajuda a trilhar o caminho do “amor próprio”. Não um amor que isola, mas um amor que não teme a batalha. Santo Agostinho colocou na mesma dimensão os verbos amar e conhecer. Numa leitura agostiniana da Arte da Guerra de Sun Tzu podemos dizer que não preciso temer a batalha, se amo a mim mesmo, porém se a relação comigo mesmo é egoísta e narcisista a derrota já está prenunciada.
Citas
GESCHÉ, Adolphe. O Sentido. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 70.
2 GESCHÉ, A. 2005, p. 158
Imagem: http://www.a3coaching.com/2012/06/ejercicios-faciles-para-amarse-a-si-mismo/
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