Monoteismo e violência (3)

21 de Febrero de 2018

[Por: Eduardo Hoornaert]




Nesse terceiro texto da série ‘Monoteísmo e violência’, proponho que contemplemos brevemente a acolhida que as propostas originais dos quatro principais expoentes do monoteísmo (Abraão, Moisés, Jesus e Maomé) tiveram concretamente, ao longo dos tempos, tanto entre judeus como entre cristãos e islamitas. 

 

Se passarmos uma olhada pela história, vamos descobrir sem dificuldade que, em geral, os monoteístas não conseguem se relacionar satisfatoriamente com seus irmãos e suas irmãs, filhos e filhas da proposta monoteísta original. São irmãos e irmãs que não se entendem. Podem até ficar lado a lado por uns instantes, na formalidade, para um retrato da família, mas logo depois se separam de novo. 

 

Os judeus, que durante quase toda a sua longa história vivem enquadrados em sistemas políticos estrangeiros de cunho politeísta (o reino independente de Israel funciona pouco tempo) vivem entre 135 (destruição de Jerusalém) e 1945 (final da segunda guerra mundial), desprovidos de uma terra onde se fixar. Na diáspora, eles se dedicam principalmente em fortalecer laços internos de coesão familiar, de parentesco e vizinhança e, nos negócios, de confiança mútua (trust). Tudo dentro do paradigma da exclusividade, não do universalismo de Abraão, Moisés, Jesus e Paulo. 

 

Os cristãos, ao contrário, têm oportunidades de ampla expansão a partir do reino do imperador Justiniano que em 529 fecha o último templo romano (em Assua, Núbia) e no mesmo ano a última trincheira da intelectualidade grega, a academia filosófica de Platão em Atenas (após um milênio de funcionamento). Protegidos pelo estado, monges missionários alargam as fronteiras do império, escalam a muralha de Adriano na Inglaterra, navegam pelo mar da Irlanda, atravessam o Reno e o Danúbio. No Oriente, eles acompanham mercadores pela Rota da Seda e alcançam a Índia e a China. No século XVI, com a ‘descoberta’ do Novo Mundo, frades missionários atravessam o Atlântico para converter gentios e erguer, em um mesmo gesto, a cruz de Cristo e a coroa colonial. A base ideológica dessas impressionantes conquistas cristãs é invariavelmente um monoteísmo exclusivista, não universalista: um Deus, um papa, um rei, uma igreja, um pai. 

 

Os islamitas entram no mesmo funil. O termo ‘jihad’ (guerra santa), que no início expressa a legitimação do uso de força defensiva, logo serve para justificar a guerra ofensiva. O verso 9/5 do Alcorão reza: Matem os idólatras onde quer que os encontrem. O que acaba complicando a teoria islamita da guerra é o fato de que o próprio Maomé, em suas incursões, nem sempre cuidou de avisar previamente aos que ele agredia. Entregue aos sabores e dissabores dos califas (chefe; sinônimo: imã), o ímpeto conquistador islâmico só encontrou freio eficaz quando as ‘ummas’ se transformaram em estados formais, que se viram na obrigação de seguir as regras de um direito internacional de caráter não-islâmico. 

 

Diante desse quadro, não adianta acusar os outros. O fato é que judeus mal conseguem conviver com cristãos e estes não gostam de ver islamitas por perto. Chegamos a uma conclusão incômoda, que confirma a tese da historiadora Catherine Nixey, que apresentei em ‘monoteísmo e violência 01’: o imaginário monoteísta, tal qual é vivido concretamente, leva à violência e conduz ao fanatismo. Enraizado desde séculos na mente das pessoas, o monoteísmo ‘real’ é um obstáculo à paz. 

 

É para ficar desse jeito? Com a globalização, nossas sociedades não permitem mais as tradicionais posturas de intolerância. Os tempos das alternativas radicais (ou conversão, ou escravidão, ou morte) passaram. Os ‘goim’ (gentios) de ontem convivem com os judeus de hoje, os ‘pagani’ (pagãos) de ontem com os cristãos de hoje, os ‘kafirun’ (idólatras) de ontem com os islamitas de hoje. Ninguém mais teme o corte das ‘duas espadas’ dos papas medievais. Nem a jihad de Maomé (ou das cruzadas) consegue resolver os problemas de hoje. Os monoteístas, querendo ou não, estão a cada dia diante de novos desafios em termos de convivência. Isso implica um processo lento, cotidiano e persistente. A ideia da paz poderá se tornar eficaz quando a palavra ‘paz universal’ for entendida como legítima ‘palavra de Deus’, expressão da ‘vontade de Deus’, ou seja, quando se conseguir traduzir o rico e complexo imaginário bíblico (Deus e Satanás, anjos e demônios, bem e mal, mérito e pecado, reino e apocalipse, santos e pecadores, morte e ressurreição, céu e inferno, encarnação e ascensão) em motivação para comportamentos pacíficos. Eis um desafio que merece ser tomado a sério, pois as imagens bíblicas, evangélicas e corânicas estão tão firmemente ancoradas na mente das pessoas que, sem elas, a ideia da paz universal terá pouca chance de se viabilizar.

 

 

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