Mística e secularidade

19 de Febrero de 2018

[Por: Maria Clara Lucchetti Bingemer]




Refletindo sobre as raízes históricas do fenômeno da secularização, podemos situá-las a partir das raízes da cultura moderna. A secularização é o produto de uma compreensão do mundo que repousa não mais sobre o mito (mythos), mas sobre o discurso racional (logos). Essa visão e esse processo que des-encanta o mito e instaura o primado do Logos, portanto, vem desde a filosofia antiga e conduz a certa desmistificação do saber e a uma libertação da vida comum das normas religiosas e teológicas.

 

Sendo um longo processo histórico, a secularização vai se complexificando ao longo do tempo e após mais de quatro séculos, já não admite uma interpretação unívoca.  Pelo contrário, revela ter ido adquirindo ao longo do tempo uma pluralidade de aspectos. E devido a essa mesma complexidade, vai sendo igualmente interferida e atravessada por numerosas interfaces em meio às quais haverá que poder descobri-la e entendê-la, em novas bases e com diferentes chaves de leitura. 

 

O Cristianismo possui uma relação um tanto única com a secularização.  Pois, se por um lado propõe um caminho místico e ético que foi organizado e institucionalizado como uma religião, por outro, não recusa nem repudia a secularização.  Pelo contrário, mantém com ela relações de convivência e mesmo de cordialidade. Isso se deve ao fato de que o mistério da Encarnação, em torno ao qual gravitam a mensagem e a fé cristãs, não repugna nem rejeita a secularização

 

O mistério que está no centro da fé cristã – de que o Deus de toda glória e majestade se encarna e se deixa ver, ouvir, tocar e apalpar como qualquer ser humano –  é, na verdade, compreensível e mesmo crível a partir da secularidade. O mistério da encarnação na verdade diz que, uma vez que tudo foi tocado por Deus desde dentro, então tudo tem valor positivo. Nada é menos digno, menos nobre, menos valioso porque está situado no meio do século. Tudo foi assumido pelo Verbo feito carne na plenitude dos tempos. Portanto, tudo, sem exceção, está submetido ao crivo da secularidade, incluindo o próprio Deus que, em seu processo kenótico de descida ao seio daquilo que é humano, lhe dá valor positivo com sua pessoa e sua presença. No cristianismo, a encarnação confirma a dignidade do mundo e do humano e sua diferença para com Deus. A secularização aparece, pois, como a continuação no tempo de uma “desdivinização” do mundo e do humano por parte de Deus mesmo. E essa dessacralização é positiva, já que permite a Deus refulgir em meio à Criação na plenitude de sua divindade, ao mesmo tempo sendo e revelando-se totalmente outro e radicalmente próximo da humanidade. 

 

A partir, portanto, destas considerações, cremos poder afirmar que já se encontra no Cristianismo e em toda a revelação bíblica a possibilidade da abertura de uma interface com uma concepção mundana e secular do mundo, na qual a religião e a religiosidade não se impõem como compreensão unívoca e fundamental. Nesse sentido, pode-se afirmar que já existe, mesmo no texto bíblico, uma emancipação do ser humano em relação a Deus e à religião. O processo de secularização não faz outra coisa senão reforçar isto em novas e mais universais bases. Apresentando uma face positiva e não apenas negativa, a secularização vai lembrar-nos que a emancipação do humano não significa, necessariamente, o crepúsculo de Deus. E que, se a secularização pode ser vista – em muitas de suas faces – como inimiga de certa concepção de religião, muito particularmente da religião institucionalizada, - não necessariamente quer isto dizer que a mesma secularização, em outras de suas faces, não possa conviver – ou seja, fazer interface, – e com um aceitável nível de cordialidade, com a experiência humana da fé.

 

A assimilação deste estado de coisas não é ainda plena no seio da comunidade de fé e da teologia.  Constatam-se hesitações, medos, fugas e tentativas de impossíveis voltas a um cristianismo pré-moderno, na esperança de, a partir daí, resgatar a hegemonia de que a religião institucionalizada gozava em outros períodos da história.  Por outro lado, a própria modernidade conhece uma crise profunda, com a queda das utopias nas quais havia concretizado seu modelo e a emergência de uma nova subjetividade que questiona a concepção do ser humano configurada primordialmente pela racionalidade, reivindicando os direitos de valores que pareciam pertencer ao passado, quais sejam: a afetividade, a gratuidade, a contemplação. 

 

Por isso a mística em tempos atuais não foge do secular para refugiar-se no sagrado, mas mergulha na secularidade e no profano buscando aí o rosto de Deus que se revela de outras maneiras e outras formas, seguindo outros caminhos. Com as utopias em progressivo colapso, as certezas desaparecidas, uma incrível abundância de meios que são feitos para atingir fins poucos, escassos e pobres, o ser humano contemporâneo busca ansiosamente, experiências que possam dar sentido a sua vida e dizer-lhe que ainda vale a pena viver neste planeta. As experiências místicas realizadas em meio à secularidade e indissociáveis de uma ética e um compromisso histórico pode certamente responder e corresponder a esta busca.  E dependerá dos fiéis e das igrejas que sejam mais ou menos configuradas pela revelação cristã que proclama a Encarnação do Absoluto em meio ao secular e ao contingente.

 

 

Imagem: https://www.cmis-int.org 

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