06 de Febrero de 2018
[Por: Agenor Brighenti]
Em sua “volta às fontes” bíblicas e patrísticas, uma das grandes mudanças do Vaticano II foi o resgate de uma “Igreja-comunidade’ e a consequente superação do velho e caduco modelo de uma “Igreja-massa”.
Da nova auto-compreensão da Igreja como Povo de Deus, veio a passagem do binômio clero-leigos para comunidade-ministérios, o surgimento da pastoral orgânica e de conjunto, a criação dos secretariados diocesanos de pastoral, dos conselhos e assembleias, das equipes de coordenação dos diferentes serviços e níveis da Igreja, enfim, os planos de pastoral, fruto de processos participativos. Na América Latina, a Igreja foi mais longe na recepção da renovação conciliar. Superando a paróquia tradicional, lançou-se na criação das comunidades eclesiais de base, segundo Medellín (1968), “focos de evangelização e célula inicial da estruturação eclesial” (Med 6,1).
Hoje, passados cinquenta anos, depois de se ter avançado bastante, nas últimas décadas entramos num processo de “involução eclesial” em relação à renovação do Vaticano II, ainda que recentemente atenuado com instauração de um pontificado novo. Muitos padres, com determinados movimentos de Igreja, têm ressuscitado a velha Igreja barroca: uma Igreja massa, visibilidade, prestígio e poder. Na contra-mão do modelo eclesial neotestamentário, em lugar de multiplicar o número das pequenas comunidades, preferem aumentar o tamanho de seus templos.
Da Igreja doméstica às paróquias massivas
Os primeiros cristãos haviam entendido muito bem que a fé cristã é “eclesial”, isto é, vivência em comunidade da vida e obra de Jesus, que é o Reino de Deus. Quem aderia a Jesus e à Boa Nova, se juntava com os companheiros de fé, conformando pequenas comunidades, que se reuniam nas casas – a domus ecclesiae – ou a “Igreja doméstica”. Os primeiros cristãos viviam a fé em pequenas comunidades não porque eram poucos. Tanto que quando o número de pessoas da comunidade crescia, em lugar de aumentar o tamanho da casa, repartiam a grande comunidade, criando outras pequenas comunidades. No final de era apostólica, só em Roma, havia mais de quarenta destas Igrejas pequena-comunidade.
Como atestam os Atos dos Apóstolos, as pequenas comunidades permitiam aos cristãos serem assíduos na oração e partilha, tendo tudo em comum. Não que as primeiras comunidades não tivessem defeitos e problemas. Mas, foi por causa deste modelo de Igreja que, neste tempo, tivemos um cristianismo da mais alta qualidade. A prática da caridade causava admiração até ao Imperador. As escolas de catecumenato geravam cristãos convertidos, com espírito de pertença e profetismo. E o sangue dos mártires era semente de novos cristãos (Tertuliano).
Com a anexação do cristianismo à sorte do Império romano e as “conversões” em massa, rapidamente, já no século V, praticamente se perdeu tudo isso. As pequenas comunidades incharam de cristãos não-convertidos. Da Igreja nas casas, se passa para as paróquias, grandes templos, nos quais a assembleia dos irmãos vira massa anônima. Os fiéis, antes membros ativos de comunidades, passam a ser clientes que só vêm à Igreja para receber os sacramentos. A maioria dos ministérios, inclusive o diaconato, desapareceu. A Igreja passa a ser os bispos e os padres, que comandam a massa dos cristãos (cristandade). A vida cristã tende a se restringir ao espaço intra-eclesial, a atos de culto. É a denominada por Medellín, “pastoral de conservação”, que reinará do início da Idade Média até à renovação do Vaticano II.
Da paróquia a uma Igreja de pequenas comunidades
Para uma Igreja-comunidade, o Vaticano II propõe renovar a paróquia. A Igreja na América Latina foi mais ousada, assumiu o desafio de reconfigurá-la, a partir das comunidades eclesiais de base. Toma-se consciência que a Igreja só será verdadeiramente comunidade, se for comunidade de pequenas comunidades. Uma comunidade eclesial, para ser realmente comunidade, precisa ter tamanho humano, condição para a ministerialidade e a corresponsabilidade de todos.
Para Medellín, não é a paróquia a unidade eclesial mais básica, mas as CEBs, denominada a “célula inicial da estruturação eclesial”. Para Aparecida, as CEBs descentralizam e articulam as ‘grandes comunidades’ impessoais ou massivas em ambientes simples e vitais. Elas fonte e semente de variados serviços e ministérios, a favor da vida, na sociedade e na Igreja” (DAp 179).
Consequentemente, o desafio é muito maior do que simplesmente “renovar a paróquia”. Renovar a paróquia é partir dela, criando “grupos” dentro da matriz e das capelas), sem que se chegue a configurar uma Igreja-rede de pequenas comunidades. Grupos e movimentos não são comunidade, são grupos. Podem e até precisam existir, mas desde que seus membros estejam dentro da comunidade. Na realidade, o verdadeiro desafio consiste em “reconfigurar a paróquia”, o que implica em repensá-la a partir das comunidades eclesiais de base ou das pequenas comunidades, inseridas profeticamente no seio da sociedade. O resultado deste processo, até pode continuar sendo chamado de “paróquia”, mas será outra coisa totalmente distinta, uma reconfiguração da Igreja no seio da Igreja Local, fruto do resgate do modelo normativo neotestamentário da domus ecclesia. Numa sociedade fundada no “triunfo do indivíduo solitário”, não se trata de uma tarefa fácil. O Papa Francisco, em Evangelii Gaudium, fala de uma “crise do compromisso comunitário”, algo contra-cultural, que encontra resistência, quase generalizada. Entretanto, o cristianismo é portador de uma diferença, que precisa fazer diferença.
Imagem: http://www.arquidiocesedefortaleza.org.br/wp-content/uploads/2013/04/CEBs320.jpg
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