Mística em tempos de crise ética

22 de Enero de 2018

[Por: Maria Clara Lucchetti Bingemer]




O tempo em que vivemos passa por várias crises. Uma delas é uma profunda crise ética. Embora a palavra ética seja uma das mais usadas hoje em dia e encontremos comitês de ética em todas as instâncias das instituições, trata-se de uma ética que não obedece ao paradigma que acompanha a humanidade desde a Antiguidade, e que propõe um sistema de valores que configura a vida. 

 

Nas épocas pré-modernas, a Moral era teológica, ou seja, a Moral era Deus, sendo a fé atribuidora da virtude. Assim, o homem estava a serviço de Deus e não da humanidade, a qual ficava em segundo plano.  Com a virada moderna, foi desencadeado um processo de desvinculação moral da religião, constituindo-se este em um ponto marcante no desenvolvimento secularizador. O indivíduo passa a ser o valor soberano da Ética laica secularizada. Nesse contexto, o direito e não o dever encontra-se na posição absoluta e preponderante.

 

Na tardo modernidade, com a crise em que entra a razão moderna e suas consequências, há uma mudança do papel do dever, com o seu gradual enfraquecimento impositivo. Neste contexto de “crepúsculo do dever” e de “ética indolor” – conceitos que desenvolve Gilles Lipovetzky - se apresentam fatores éticos na tendência pós-moralista preponderantemente de prazer. Isso foi levantado, em meados do século XX, pela ideia consumista e seu incentivo pela prevalência do ter identificado com o sentimento de felicidade. Estamos diante da sociedade hedonista onde “a época da felicidade narcisista não se equipara à da máxima ‘é proibido proibir’, mas sim a uma ‘moral sem obrigações nem sanções”.

 

A moral estabelecida não contém sanções nem obrigações, pelo contrário, objetiva estruturar o individualismo hedonista-democrático. ‘É indolor, porque é encarnada no tempo presente e conforme o desejo de seus seguidores. Também faz parte de um show de comunicação, quando veiculada pelos meios midiáticos. Isso implica uma benevolência não vinculativa e distante, sem nada que ocupe e se torne um peso para o ego. Essa moral igualmente apresenta uma configuração econômica, pois criou uma nova forma de racismo. Não é mais a cor da pele ou a religião que originam as atitudes racistas discriminatórias.  Hoje, a origem do estímulo do racismo está vinculada às correntes migratórias relativas à economia. É o ter que determina qual a “raça” superior e qual a inferior. 

 

O trabalho deixou de ser dever moral para com a sociedade e se encontra ligado à satisfação pessoal, ao reconhecimento profissional de um plano de carreira para o futuro. Trabalha visando o tempo da aposentadoria. Não existe a mística do trabalho que enobrece e transforma o mundo.

 

Em meio à crise ética que vivemos, há que estar conscientes de que não basta a ética. Sobretudo quando esta é uma ética “light” e indolor como a que impera hoje. Desde o ponto de vista da teologia, afirmamos que à ética há que acrescentar-se a mística –ou seja, a experiência do mistério, da transcendência como fonte da ética.  Somente então a ética deixa de ser ética de prevenção de desastres ou salvaguarda institucional e passa a ser ética do cuidado, do cuidar do outro, de ser atingido pelo que atinge o outro.

 

As responsabilidades morais são assimétricas e não recíprocas. O outro por quem me sinto responsável e a quem ofereço meu amor e meu cuidado não pode retribuir-me nem responder-me na mesma medida. Minha responsabilidade por ele ou ela, portanto, só pode derivar de uma mística. É a mística que pode abrir o sujeito em direção ao Todo.

 

Nesta perspectiva, então, fazer justiça será não contentar-se em cumprir a lei e praticar o mínimo necessário.  Mas levará a sempre querer mais de si mesmo... Só quando se sabe de tudo isso é que o desejo de justiça se torna suscetível de estar imune ao mais impressionante dos perigos: o do contentamento de si mesmo e de uma consciência para sempre e de uma vez por todas leve, tranquila e limpa. E, pior: satisfeita de si mesma. 

 

É aqui –inspirada e iluminada pela mística– que nasce e ganha força a sensibilidade moral, até que ela cresça e se torne forte o suficiente para carregar o fardo da responsabilidade por qualquer instância de sofrimento e miséria humana.  As normas legais ou investigações empíricas contabilizarão méritos, atribuições de culpa e casuísmos.  A mística permitirá tornar-se vulnerável à dor e ao sofrimento do outro, de qualquer outro, mesmo que não tenha sido provocado por mim. 

 

É assim e só assim que conseguiremos ultrapassar as barreiras de uma ética em crise e aterrissar no terreno fecundo e promissor da comunhão. 

 

 

Imagem: https://i2.wp.com/noticieros.televisa.com/wp-content/uploads/2017/06/1-9prtscff19ggbkxnwxps-q.jpg?fit=2000%2C1331&quality=100 

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