11 de Enero de 2018
[Por: Eduardo Hoornaert]
Prossigo com a narração de uma história que iniciei no texto anterior desta série, em que escrevi que o sistema de processamento tecnológico de algodão, desde o início do século XIX, baseado na monocultura, com vastas plantações e exploradora do trabalho escravo, é fonte de violência.
Continuando a conversa se vê que, durante um longo período, os britânicos não conseguiram forçar os agricultores indianos a praticar a ‘monocultura do algodão’, não conseguiram controlar os teimosos intermediários indianos, que não estavam dispostos a enviar algodão não processado para a Europa. Para o império de algodão, com seus barões de algodão, na Inglaterra e, mais tarde, na Europa Continental, era importante ter um forte poder de Estado, que pudesse forçar os agricultores e os trabalhadores a um fornecimento e a uma produção permanentes. Assim se compreende que não é coincidência que o século XIX fosse marcado pelo surgimento de poderosos Estados-nação, bem como de um proletariado nas centenas de fábricas de algodão (com fiação e tecelagem mecânicas) na Europa e nas centenas de milhares de fazendas de cultivo do algodão que exploravam escravos, do outro lado do Atlântico.
Isso explica a Guerra Civil Norte-Americana, que teve efeitos globais. O ano 1861, início dessa guerra foi uma data-chave na rede mundial do algodão. A guerra continuou até 1865. O motivo era a abolição da escravidão. As cidades do Norte da América, onde o algodão era processado, eram a favor da abolição; o Sul rural, onde os escravos proporcionavam riquezas nas imensas plantações, defendia a escravidão a ferro e fogo. O conflito entre o Sul conservador dos EUA e as cidades ao longo da Costa Leste norte-americana tem reflexos até hoje. É só pensar na inesperada vitória de Donald Trump. Devido a essa guerra, houve de repente uma escassez de algodão no mercado mundial, resultando em aumento de preços. Centenas de fábricas na Europa foram fechadas; centenas de milhares de trabalhadores ficaram desempregados. Os barões de algodão estavam ansiosamente à procura de novas regiões produtoras de algodão. Ao se unir ao Império Britânico, a Índia expulsou os indianos ‘teimosos’ de seus teares e os empurrou em direção à zona rural. O Estado Indiano serviu para cultivar algodão – não para os seus próprios teares ou para as fábricas de algodão da Índia (que surgiram por todo canto nesse período) - mas para ‘o mundo’, ou seja, para a Europa. Ao mesmo tempo, a África foi dividida em colônias e também foi direcionada, tanto quanto possível, para a monocultura do algodão. Com a crise da Guerra Civil Norte-Americana, as colônias foram forçadas a produzir algodão para ser processado na Europa. Indianos e egípcios, brasileiros e mexicanos, todos compravam máquinas britânicas e desse modo, o império do algodão provocou desindustrialização nos países do Sul. Os fabricantes de tecidos ocidentais fizeram numerosas tentativas para, por meio de pressão exercida pelo domínio colonial (portanto, o governo), destruir o processamento de algodão por fiadores e tecelões locais. Em consequência, fiadores e tecelões tinham de optar por cultivar algodão como assalariados ou, então, desaparecer no proletariado urbano.
Mesmo assim, aos poucos o algodão migrou para o sul. Na década de 1930 surgiu, na então colônia britânica do Egito, uma das maiores fábricas de tecido de algodão do mundo, com 25 mil trabalhadores têxteis. Isso depois de anos de dificuldades criadas pela importação de algodão britânico. Foi um marco na história, pois mostrou que a produção de tecidos de algodão estava aos poucos abandonando a Europa e criando um novo cenário mundial. Em muitos países, a descolonização foi fortemente apoiada pelos fabricantes de algodão e seus trabalhadores. Nacionalismo, emancipação e apoio ao processamento nacional de algodão andavam de mãos dadas. Enquanto a posição dos fabricantes de algodão no Norte enfraquecia gradualmente, os fabricantes do Sul (no Brasil, por exemplo) conseguiram criar um Estado (apoiador) de acordo com suas necessidades. Quebraram aos poucos a hegemonia do algodão do Norte.
No início do século XX, a indústria de algodão da Ásia era a que crescia mais rapidamente e desse modo a produção da matéria-prima voltou para onde ela tinha começado, milênios atrás. Hoje, nossas roupas são fabricadas na China e em Bangladesh (muitas vezes em péssimas condições de trabalho). Se o império do algodão primeiramente se serviu de Estados fortes e apoiadores, ele, a partir da década de 1970, procurou se libertar deles. As multinacionais de algodão e de têxteis tomaram a dianteira e agora ignoram largamente os Estados (que elas primeiro utilizaram para a regulamentação e para os subsídios). Sem obstáculos, elas hoje onde é mais barato, e fim de papo. Pois, no mundo de hoje, são eles que mandam.
Até aqui focalizei a história do algodão. Mas, em se tratar da relação entre tecnologia e violência, não se pode omitir histórias mais recentes, como a do ‘Império Monsanto’, por exemplo, um Império novo, vinculado à tecnologia do algodão. 26% de todos os inseticidas usados no mundo são destinados ao cultivo de algodão. Daí o poder da Monsanto, que consegui impor à Índia seu algodão geneticamente manipulado (algodão Bt), provocando ondas de suicídio entre os agricultores. A Monsanto é famosa por dispor de um lobby fortíssimo junto a governos do mundo inteiro. Assim conseguiu que se discriminasse, em muitos países, a produção de tecidos a partir de fibras de e cânhamo, que são quatro vezes mais resistentes do que as fibras de algodão. Depois da Segunda Guerra Mundial, as grandes companhias usaram a problemática das drogas para lançar suspeitas sobre a fibra de cânhamo. Acontece que o cânhamo não precisa de agroquímicos (leia: não precisa de Monsanto) e a planta capta muito CO2, o que é muito interessante em tempos de mudanças climáticas. Felizmente, nas últimas décadas, está ocorrendo um retorno da produção e do processamento de cânhamo.
Poderíamos falar aqui igualmente do ABCD. Nunca ouviu falar? Todo mundo conhece as ‘Unilevers’ e as ‘Nestlés’ da vida, mas quem conhece as invisíveis gigantes de alimentos ADM, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus? Assim como o império do algodão, no passado, puxou todo o poder para a Europa, o comércio mundial de cereais e de substitutos de cereais (como a soja) puxa hoje o poder para grandes companhias multinacionais. A ADM (Archer Daniel Midland Company) foi fundada em 1902, a Bunge surgiu em 1818, a Cargill veio em 1865 e a Dreyfus foi criada em 1851. O valor conjunto das vendas das quatro empresas ABCD é maior do que a de muitos países. Em conjunto, somam cerca de 250 bilhões de euros por ano (dos quais, em 2015, a Cargill levou 106 bilhões). Se você analisar os dados do lucro dessas empresas nas últimas décadas, perceberá que os maiores lucros se originam menos da logística do transporte a granel não processado (trigo, soja, milho, café), que beneficia o Brasil, por exemplo, mas do primeiro processamento (e posterior transporte a granel) dessa matéria-prima (por exemplo, soja), a serviço da indústria de alimentos (que desemboca nos Supermercados) e de rações animais, sempre beneficiando os países centrais do sistema. Essas empresas de comércio jamais teriam conseguido ser tão grandes sem subsídios por parte de governos nacionais. Além disso, elas quase não pagam impostos. Porém, sem elas (as empresas ABCD), não haveria fazendas industriais na Europa e não haveria, do outro lado do oceano (com o Brasil na liderança), gigantescas lavouras de monocultura de soja e de milho. Assim como o algodão provocou uma concentração nunca dantes vista de riqueza, as ABCD de hoje são o motor de uma agricultura industrial imposta mundialmente, que gera imensas riquezas para poucos. Elas representam, juntamente com as ‘Monsantos’ e as ‘Syngentas’ da vida, uma agricultura intensiva de capital, que marginaliza centenas de milhões de famílias da agricultura camponesa e que, além disso, esgota os ecossistemas, pois o transporte global de granel (por navio) é uma das causas do aquecimento global. Esse modelo agrícola faz parte do problema ecológico que enfrentamos, enquanto as práticas agrícolas sustentáveis nas mãos dos agricultores campesinos poderiam ser parte da solução.
Para terminar com uma nota positiva: ao lado desses absurdos, surgem, no mundo inteiro, movimentos de resistência, visando devolver às comunidades locais as chamadas ‘comodidades’ (commodities), coisas que são (ou deveriam ser) comuns a toda a humanidade, patrimônios da humanidade: ar puro, terra, sementes, água, transporte, alimentos. Atualmente surgem, em todos os continentes, soluções criativas que contrariam a fragmentação do planeta pelas ABCD e por outras mãos invisíveis.
Imagem: Imagem: http://img.rtve.es/v/2207701/
Relacionados
Tecnologia e violência (1)
[Por: Eduardo Hoornaert]
©2017 Amerindia - Todos los derechos reservados.