A irrupção do pluralismo e o contra-ponto da intolerância (Ambiguidades de um tempo pascal X)

03 de Enero de 2018

[Por: Agenor Brighenti]




Entre as grandes conquistas da modernidade, está o reconhecimento e a legitimação da diversidade. Até então, tendia-se a acreditar que a consciência era coletiva e, portanto, quem pensava diferente, era um herege ou um demente. Civilizados, praticamente eram só os europeus. Os índios não eram civilizados, pois não tinham civilização. Religião, a única verdadeira era o cristianismo, ou mais propriamente o catolicismo. As demais não tinham nada de divino, para não dizer que eram obra do diabo. O povo não sabia se autogovernar e, portanto, as dinastias hereditárias governavam com poder absoluto, sem a participação dos cidadãos. Enfim, o “nós” se sobrepunha ao “eu”, ou seja, o coletivo sobre o individual e as instituições sobre as pessoas.

 

A irrupção dos diferentes e das diferenças

 

Com o advento da modernidade no século XVI, começou um gradativo processo de individuação no campo da antropologia ou da psicologia; de liberdade de consciência, com a admissão do livre arbítrio em matéria religiosa, pela Reforma protestante; de autonomia da razão em relação à fé e o surgimento das ciências metodologicamente a-religiosas; de uma coletividade gerida por todos, através de um poder democrático; enfim, um gradativo processo de reconhecimento de direitos humanos universais e invioláveis, independente de cultura, raça ou religião. É a legitimação da liberdade de consciência, da liberdade religiosa, da liberdade de opinião, da diversidade de culturas, dos direitos humanos individuais, da democracia como forma de exercício do poder e da consequente separação entre religião e Estado. 

 

Não foram conquistas fáceis e nem isentas de toda sorte de mal-entendidos e de repressão, às vezes, violenta. E nem o processo está terminado. Basta ver as tensões ainda presentes entre religiões, países desenvolvidos e em desenvolvimento, entre etnias, tensões em relação aos direitos das mulheres, dos homossexuais, de negros e índios, em relação à migração, a diferentes estilos de vida, etc. No mundo de hoje, não somente está presente a diversidade, como a sociedade atual é o espaço no qual se estimula a diversificação crescente. Há uma espécie de “cultura copulativa”, onde coexistem diversos estilos e formas de vida. Com isso, abre-se um leque de novos padrões de comportamento e de ofertas de todo tipo, sejam elas culturais como religiosas, numa espécie de grande mercado, onde cada um se sente no direito de escolher o que mais lhe apraz. 

 

O contra-ponto da intolerância

A diversificação crescente ou esta cultura pluralista, entretanto, gera instabilidade e medo. O crescente processo de diferenciação dá a sensação de perda de identidade e desenraizamento, de solidão no meio da multidão, levando a muitos querer orientação e segurança existencial. Por isso, a sociedade pluralista é também a sociedade do tradicionalismo e do fundamentalismo; a sociedade da tolerância é também a sociedade da intolerância, da xenofobia e dos exclusivismos. Aí estão, desde os neonazistas até o estado islâmico, a repressão à migração, os feminicídios, a discriminação dos homossexuais, os regionalismos e nacionalismos, a ascensão de governos defensores do Estado mínimo e o fim do Estado social promotor de políticas de reconhecimento e inclusão dos discriminados de toda sorte. Em lugar do diálogo e o debate, da abertura ao diferente ou de deixar-se enriquecer com as diferenças, apresentam-se as opiniões polarizadas, dogmatizadas, sem o devido distanciamento e senso crítico, tão necessários para um discernimento sereno e tanto quanto possível objetivo. 

 

O tradicionalismo como autodefesa

 

O contra-ponto da intolerância está presente também na esfera religiosa, inclusive na Igreja católica. Entre nós, temos o recrudescimento de conservadorismos, tradicionalismos e fundamentalismos, presentes sobretudo na espiritualidade, na eclesiologia e na volta do clericalismo. Há segmentos importantes da Igreja, fazendo do passado um refúgio, o que redunda em enrijecimento institucional e em entrincheiramento identitário. São incapazes de dialogar com uma sociedade grávida de novos sinais dos tempos, vistos entretanto como ameaça à fé que professam.

 

Isso explica a involução eclesial das últimas três décadas em relação à renovação do Vaticano II, bem como a ascensão de movimentos elitistas e tradicionalistas ou o refúgio numa espécie de “subcultura eclesiástica”, em divórcio com o mundo. Como explica também, a oposição aberta e descarada de alguns segmentos da Igreja ao Papa Francisco, quem está fazendo nada mais do que retomar o Vaticano II, um concílio que tentaram desqualificar ou mesmo negar. 

 

Na realidade, o que lhes incomoda é que o Concílio inseriu novamente a Igreja no seio da sociedade autônoma, numa atitude de diálogo e de serviço, especialmente a partir dos mais pobres. E que, para isso, impõe-se o respeito à liberdade, a acolhida dos diferentes e das diferenças, deixando-se enriquecer por aquilo que o Espírito suscita para além das fronteiras eclesiais. Antes do missionário, sempre chega o Espírito Santo. Hoje, mais do que nunca, vale a máxima de Santo Agostinho: “nas coisas essenciais, a unidade; nas coisas não essenciais, a liberdade; em todas as coisas, a caridade”.

 

 

Imagem: http://aguasdomar.com/wp-content/uploads/2016/08/pluralismo-e-intolerancia-dest2-aguas-do-mar.jpg 

 

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