28 de Diciembre de 2017
[Por: Agenor Brighenti]
A realidade que nos rodeia é complexa, marcada por luzes e sombras. Compreendê-la exige reflexão e discernimento, nunca isentos de riscos no diagnóstico. É a contingência da razão, que razona senão interpretando e, consequentemente, emitindo juízos aproximados. E mais que isso, além de opaca, a realidade também é ambígua, marcada por valores e contra-valores, pela positividade e pela negatividade diante da consciência do bem e do mal ou proposta de Deus. A experiência religiosa não escapa a esta contingência, particularmente nos tempos atuais.
Menos razão e mais coração
Uma das ambiguidades da religiosidade em nosso tempo, é a busca por uma experiência do sagrado, mais mística e menos racionalista, mais pessoal e menos institucional, menos discursiva e mais afetiva e emocional. Isso é resultado do esgotamento de um projeto civilizacional, fundado no denominado modelo “racionalista dedutivo”, em seus em seus três traços característicos: objetivação, causalismo lógico e a generalização abstrata. Em outras palavras, trata-se do predomínio de uma sociedade cientificista, com a pretensão de tudo compreender e explicar, de elucidar todo mistério, supostamente relegado a uma etapa infantil da humanidade. O que se ignora hoje, a ciência explicaria amanhã. O que não se domina hoje, o conhecimento e as novas tecnologias dominariam num futuro próximo.
Os anos se encarregaram de reduzir a escombros a onipotência do sujeito moderno, pretensioso do absoluto na contingência da história. E, em contraposição à trilogia objetivação, causalismo lógico e generalização abstrata, erige-se na cultura pós-moderna uma outra mais comedida - subjetivação, singularização e participação.
Em lugar das respostas prontas, respaldadas em referenciais pré-concebidos, trata-se de levar a sério as pessoas, enquanto indivíduos, sua maneira de pensar, seus sentimentos, suas opiniões e seus desejos reprimidos. Em lugar da submissão a regras pré-estabelecidas, voz e vez no seio das instituições, desafiadas a se flexibilizarem, sob pena de se esvaziarem e tornarem-se obsoletas.
Menos discurso e mais símbolos
No campo da religião, também a experiência de fé foi instrumentalizada por uma razão fria e discursiva, que desconhece as razões do coração. O próprio cristianismo perdeu muito da mística do símbolo, da contemplação e da gratuidade, perdendo de vista sua matriz semita e oriental. Não só a mensagem, mas, sobretudo a liturgia tendeu a esvaziar-se do simbólico. O rito foi afogado pelo discurso, o símbolo opacado pelo raciocínio lógico e o coração foi endurecido pela pretensão de posse do mistério. É a religião presa ao institucionalismo de tradições rígidas e monolíticas, que não deixam Deus ser Deus e nem as pessoas serem sujeitos em sua experiência de fé.
A consequência é o distanciamento das religiões institucionais, tidas como contaminadas por esta modernidade eficientista e quantificadora, que mercantiliza todas as relações. Ora, o que a religião oferece, enquanto instância de sentido de uma vida que encontra sua plenitude e se consuma na escatologia, são basicamente bens simbólicos. Bens que não se consumam ou se esgotam em conquistas históricas, por mais libertadoras que sejam. O simbólico dá a verdadeira dimensão do mistério, do qual toda religião pretende ser mediação.
Imagem e símbolo
Não por nada que a cultura dita pós-moderna trouxe de volta a linguagem simbólica, ritual, narrativa, estética e poética, também na esfera do religioso. Mas, como em tudo o que é humano, o resgate do simbólico não irrompe sem ambiguidade.
O símbolo na religião é como que uma janela para a transcendência, é mediação. Entretanto, quando se torna um fim, o simbólico se converte em esotérico e a liturgia em magia. É o que vemos ao nosso redor. Uma das principais características da religiosidade contemporânea é seu caráter esotérico, fruto do impacto da “sociedade da imagem” sobre a linguagem simbólica e a cultura oral. Só é o que é visualisável. A realidade das imagens – a realidade virtual – tende a substituir o real da realidade. Não se respeita a dimensão “interior”, o oculto ou o ausente, tal como a realidade de Deus, que só pode ser evocada mediante o símbolo.
Na sociedade midiática, a imagem devora o símbolo, torna irrelevante a cultura oral e a tradição transmitida “ex auditu” e a mídia contribui para a banalização da religião, não só reduzindo-a à esfera privada, como a um espetáculo para entreter o público. Trata-se de uma “estetização presentista”, que substitui a religião através de sensações “in-transcendentes”, espelho das imagens da imanência. Também a religião passa a ser consumista, centrada no indivíduo e na degustação do sagrado. E Deus, um objeto de desejos pessoais, a serem realizados aqui e agora.
Imagem: http://diocesetb.org.br/f/artigos/2d83f77751b05ede7ae3e4b447fe094b1745137263_G.jpg
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