A formulação de narrativas não violentas

01 de Diciembre de 2017

[Por: Eduardo Hoornaert]




 

O filósofo grego Heráclito, que citei no primeiro texto desta série, ao afirmar que ‘a guerra é a mãe de tudo’, parte da pressuposição que a natureza humana seria inerentemente violenta e individualista. Até hoje, muitos concordam com ele e dizem que o homem gosta de brigar e se sente bem quando vê seu adversário a seus pés, derrotado. Aí ele fica exaltado e começa a gritar de alegria.

 

1. Resta saber se essa filosofia do ser humano é isenta de influências políticas. Será que Heráclito, quando afirma que o ser humano é intrinsecamente violento, está isento de considerações interesseiras? Difícil saber, mas pelo menos vale a pena lançar suspeitas acerca da influência, em sua filosofia, de pessoas (reis) ou grupos (aristocracia) interessados em conflitos e guerras. 

 

Hoje, Heráclito renasce em abundantes narrativas neoliberais, de cunho ocultamente violento, que, ao longo dos últimos trinta anos, foram pacientemente construídas e depois amplamente divulgadas por meio dos grandes meios de comunicação. Desse modo, acabaram seduzindo a muitos. Hoje se encontram na televisão, em filmes, novelas, romances, na internet, nas redes sociais, no facebook, até em livros pretensamente científicos e mesmo em cursos universitários. Não se costuma dizer que a divulgação mundial diária dessas narrativas exige muito dinheiro, pois a ativação de grandes canais de comunicação só é factível com o apoio de financiadores muito ricos. 

 

2. As narrativas neoliberais têm a vantagem de ser simples. Desse modo, conseguem rapidamente audiências consideráveis, já que recorrem habilidosamente a um enredo narrativo básico, que cativa a humanidade desde sempre. O povo sempre gostou de ouvir histórias de herói, a tal ponto que a ‘história heroica’ provavelmente seja o gênero literário mais divulgado na história da humanidade, como afirmam estudiosos como o russo Vladimir Propp, o francês Claude Lévi-Strauss e os discípulos de Carl J. Jung. O herói é deveras um ‘patrimônio da humanidade'. 

 

As pessoas, sejam quais forem suas culturas, adoram acompanhar as peripécias de um herói, que (1) formula um objetivo difícil de ser alcançado; (2) sofre repetidos e dolorosos contratempos na luta por alcançar esse seu objetivo; (3) mas finalmente é vitorioso e (4) traz a paz e a felicidade para muitos (veja Propp, W., As Raízes históricas do Conto maravilhoso, Martins Fontes, São Paulo, 1970). Esse herói pode ser uma única pessoa ou um grupo, pouco importa. O que importa é a concatenação das quatro sequências: resolução – impedimento – vitória – paz. A conclusão se impõe: a paz é fruto da guerra, da violência.

 

3. Desde os tempos da ‘guerra fria’, os criadores de narrativas liberais definiram o grande inimigo do herói civilizador: o comunismo. Eis o dragão da maldade, a besta fera, a maldição, o inimigo número um, como já se disse nos anos 1940. Depois da queda do muro de Berlim em 1989, as narrativas neoliberais herdaram, pois, a figura da maldade a ser combatida. Bastava-lhe apresentar sucessivos ‘heróis’, líderes a combater incansavelmente o poder malvado afim de manter o mundo em paz. Uma paz irremediavelmente precária (como já na narrativa de Heráclito), sempre ameaçada pelo inimigo que espia na porta. Eis o modelo narrativo que sustenta o dilúvio de informações televisionadas que submergem diariamente a humanidade. 

 

4. Apesar de seus fracassos manifestos, particularmente a grande crise iniciada em 2008, o neoliberalismo não encontrou nenhuma narrativa alternativa capaz de a desestabilizar. Isso se deve ao fato que as forças contrárias não conseguiram construir, ao longo dos últimos trinta anos, narrativas com o mesmo poder de convencimento. Ficaram tão desorientadas pela derrota da União Soviética e pela avassaladora propaganda em torno do ‘fim da história’ (Fukuyama) que permanecem, até hoje, como que atordoadas, sem saber por onde se virar. 

 

5. Mesmo assim, essa atual falta de narrativas alternativas pode ser superada. Existem narrativas tão atrativas como as clássicas histórias heroicas da guerra fria e do neoliberalismo. Narrativas que não repousam sobre o ‘princípio da violência’, mas sobre sólidas bases antropológicas. Elas podem lançar mão de uma notável convergência de descobertas na neurociência, psicologia, antropologia e biologia evolutiva, realizadas nos últimos anos, que apontam para o fato que a humanidade não é violenta por natureza (como pressupõem os neoliberais), mas fundamentalmente altruísta, possuidora de uma incrível capacidade de empatia e de uma grande tendência à cooperação. 

 

A humanidade herdou de seu passado longínquo a experiência de sua sobrevivência em ambientes particularmente hostis. O ‘homo sapiens’, de corpo frágil e lento nas reações, conseguiu sobreviver em meio a ambientes repletos de dentes, garras, chifres e presas ameaçadoras. Como? Por meio de uma extraordinária capacidade de ajuda mútua, de um impressionante impulso de cooperação. A capacidade de ajuda mútua e de cooperação foi tão importante para a sobrevivência da humanidade que ela permanece gravado em nossos cérebros.

 

6. Mas a televisão não fala disso. Ela prefere falar o tempo todo em crise, oposição, luta e guerra. Ela divulga o medo e faz com que as pessoas esqueçam a capacidade de ajuda mútua que está inscrita em seu cérebro. Ela prefere embarcar na narrativa de um ser humano dominador e violento por natureza, pois desse modo explica as crises que nos afligem. Nós mesmos esquecemos que nossa natureza é boa. De tanto ficar diante da televisão, de tanto olhar para os heróis Trump e Kim Jong-un, esquecemos de olhar para nossa própria natureza, assim como deixamos de olhar para quem vive ao nosso lado. O comportamento violento e destrutivo dos que mandam (Temer e companhia) ocupa mais nossas mentes que o comportamento altruísta e cooperativo da pessoa ao nosso lado. 

 

7. Aqui comento apenas, rapidamente, três possíveis narrativas não violentas e libertadoras. Uma primeira trata da relação interpessoal (entre duas pessoas), uma segunda da relação familiar e uma terceira da relação comunitária.

 

8. Nos anos 1950, o estudioso alemão Herbert Marcuse (1898-1979), insatisfeito com os discursos belicosos de sua época, escreveu o livro ‘Eros e Civilização’ (1955. Edição brasileira Zahar, Rio de Janeiro, 1978), que se tornou um imenso sucesso e foi amplamente divulgado pelo slogan: ‘faça amor, não guerra’.

 

Make love, not war

I know you’ve heard it before.

Make love, not war

And you know that it’s true

(John Lennon)

 

Esse ‘faça amor, não guerra’ infelizmente nem sempre foi corretamente compreendido pelas igrejas, que se omitiram de ler atentamente o livro de Marcuse. Isso, de certo modo, amortizou a possível enorme repercussão da valorização do ato conjugal como ato libertador. A reviravolta estudantil de Paris 1968 muito tem a ver com a redescoberta de narrativas eróticas em terras tradicionalmente cristãs e nos deixa hoje questionamentos não correspondidos.

 

9. Um segundo ponto trata da valorização de lindas narrativas sobre cooperação no seio da família, tanto no trabalho agrícola quanto no comércio, na indústria e na cultura, relatos sobre o tradicional mutirão e outras técnicas de colaboração familiar provenientes dos universos indígena e africano.   

 

10. Finalmente, existe uma rica cultura participativa que se desenvolve em nosso redor: projetos comunitários abertos, sem partidarismos nem obediência religiosa, que funcionam muitas vezes com meios materiais muito reduzidos, unicamente apoiados em colaborações gratuitas. Há de se multiplicar as narrativas sobre esses projetos, que têm no seu bojo a capacidade de redirecionar a economia local, até chegar a um ponto de inflexão no qual a participação da comunidade se torna a norma econômica, e não a exceção. Efetivamente, quando um trabalho comunitário é bem feito, chega-se ao ponto em que empreendimentos sociais, cooperativas e outros negócios comunitários começam a representar uma grande parte da economia local e mesmo regional.

 

11. Muitos de nossos debates tendem se concentrar somente em dois focos: o estado e o mercado, enquanto se negligenciam os três setores acima apresentados: os ‘encontros eróticos’, os trabalhos no grupo familiar e os trabalhos em torno de ‘bens comuns’. Infelizmente, iniciativas pacíficas e pacificadores desses três tipos costumam ser implacavelmente atacadas, tanto pelo estado quanto pelo mercado e mesmo pela igreja (no caso do ‘amor livre’). 

 

Esquece-se que a promoção de bens comuns, do amor conjugal e da colaboração familiar é algo crucial para a restauração da democracia em nossos países. Pois os bens comuns, o amor comum e a família comum dão sentido à vida humana da grande maioria das pessoas

 

12.novas narrativas que hoje despontam no horizonte político, como comprovam as experiências que sustentaram algumas recentes campanhas eleitorais, como a de Berry Sanders nos Estados Unidos e a de Jeremy Corbyn na Inglaterra. Ali aparecem narrativas novas, cujo sucesso dependerá da receptividade do povo. No entanto, nos dois casos mencionados, mesmo começando do zero e em circunstâncias altamente desfavoráveis, essas narrativas, de caráter pacífico, deram a candidatos como os acima mencionados, destaque nas últimas eleições.  

 

A recuperação do amor conjugal, dos bens comuns e do grupo familiar, é algo fundamental. Estamos apenas começando a verificar o que as redes de voluntários (em proliferação) que tanto usam a tecnologia digital quanto o contato humano direto, são capazes de alcançar na tarefa de se produzir narrativas não violentas, capazes de atrair grandes contingentes de pessoas.

 

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