A verdade do erro

01 de Diciembre de 2017

[Por: José Neivaldo de Souza]




Se fechas a porta a todos os erros 

Também a verdade ficará de fora

(Tagore).

 

Esta frase me provoca e faz despertar algo que há muito estava adormecido em mim: a certeza de que a verdade tem os seus erros. O que é a verdade? 

 

Aprendi, desde a tenra idade, que não existe uma via do meio, o contrário da verdade é mentira e ela é um erro. Cresci pensando assim, contestando quem pensasse diferente, pois aprendi de meus pais, que a verdade deve ser dita, em qualquer circunstância

 

A despeito disso, eu vivia uma contradição: uma coisa é dizer, outra é fazer. Explico! Era noite, estávamos em casa, de repente meu tio entrou porta adentro implorando um lugar seguro para se esconder. Sem titubear, meu pai lhe abriu o guarda-roupa. Minha mãe nos chamou e nos mandou para a cama pedindo que calássemos a boca. Na madrugada, dois homens bateram à nossa porta procurando o fugitivo. Meus pais, sem hesitar, mentiram e os perseguidores se foram. No dia seguinte, cedinho, meu tio foi-se embora. Os homens o procuravam para matá-lo. Até hoje, não sei o que sucedera, mas aprendi que a vida está em primeiro lugar, acima de qualquer erro. Tomás de Aquino diria que “em favor de um bem maior é permitido um mal menor”. Neste caso a mentira foi um mal menor. Se a verdade tem os seus erros, também a mentira, enquanto um erro, pode ter o seu momento de lucidez.

 

Aprendi a mentir e não era por maldade ou engano, mas por mero mecanismo de defesa ou, se soa melhor, por “amor à minha pele”. Lembro o dramaturgo Ariano Suassuna ao comentar sua obra: “O Auto da Compadecida”. Para ele, mentir é uma arte. Mas, é a mentira dos poetas e dos contadores de histórias e não dos perversos e enganadores. Na juventude, muitas vezes, fui salvo por omitir verdades e, já não era por amor a mim, mas por solidariedade aos amigos e, como escreve a poetiza Marta Medeiros: “os amigos não racham só a gasolina, mas lembranças, a culpa e segredos”. 

 

Cheguei à idade adulta e esta ideia de verdade continuou a me assombrar, como assombrou Clarice Lispector: “Passei a minha vida tentando corrigir os erros que cometi na minha ânsia de acertar. Ao tentar corrigir um erro, eu cometia outro. Sou uma culpada inocente”. No meio universitário ser científico é descrever a verdade do objeto, tal como ele é, o contrário implica em erro ou falácia. Quanto mais “positivista” for a experiência, mais será verdadeira. Infelizmente as ciências humanas cometeram o erro de serem “positivistas”. Na comunidade científica não é permitido errar, a não ser para constatar a veracidade de uma determinada pesquisa. 

 

Fico com a sugestão de Freud: a verdade se descobre de erro em erro. Não quero aqui fazer uma apologia ao erro, pois certo é de que o erro, ligado ao engano, é imoral e leva à morte e podemos até concordar com o escritor Bertolt Brecht que diz: “Quem conhece a verdade e a toma por mentira, a fim de ludibriar o outro, é um imoral”. Por outro lado, penso: também é imoral uma verdade que, dita com má intenção, tem o objetivo de levar à ruina uma pessoa ou um Estado. Nietzsche era de acordo. Para ele, as convicções acerca da “posse” da verdade são mais nocivas à verdade do que as mentiras. Invés, quem conhece a verdade, mas por alguma circunstância, não tem outra solução a não ser mentir, este ato pode ser perdoado.  

 

Não digo, com isso, que aprovo a mentira e questiono a verdade. Só entendo que uma mentira, por pura ignorância ou sem o propósito do engano ou maldade, não precisa ser condenada, é só um erro. Confesso que menti e muito! Alguns erros foram justificados, pela minha ânsia de acertar; outros foram desastrosos, porém perdoados, devido minha relação com Deus, com o próximo e comigo mesmo. Aprendi a me respeitar, lidar com os meus anjos e demônios. Não quero ser uma pessoa perfeita por conta de minhas convicções que não levam a nada e não me fazem ser melhor para o mundo

 

Certo pensador escreveu: “quem não passou pela fogueira, não sabe o que é o carvão”. Anseio por diferenciar as verdades, passando pela mentira, pelos erros. Descobri que há duas maneiras de viver a verdade: uma pela via dos filósofos e outra, pelos caminhos dos poetas e profetas. A primeira diz da conformidade da mente aos fatos, o que os gregos, através de Aristóteles, chamavam de Aletheia e os teólogos latinos, por meio de São Tomás de Aquino, sistematizaram como: Adaequatio rei et intelectus (adequação dos fatos ao intelecto)

 

A segunda forma diz da conformidade dos fatos ao conhecimento. Numa perspectiva teológica o intelecto tem uma meta: o amor. Adélia Prado lembra que aprendera da mãe que o estudo e a intelectualidade é a coisa mais fina do mundo e, aprendera mais, que a coisa mais bela do mundo tem que estar ligada a um sentimento: o amor. De fato, o que dizer do erro Abraão ao mentir para o rei sobre Sara? Como julgar Raabe que escondeu os espiões israelitas em sua casa e, por conta disso, enganando os soldados de Jericó, conseguiu salvar um povo. Uma mentira em favor de uma verdade, em favor do amor. Mario Quintana escreveu: “Não há coisa na vida inteiramente má. Tu dizes que a verdade produz frutos... já viste as flores que a mentira dá?” Certo o poeta. 

 

Nos escritos bíblicos a verdade é pensada como fidelidade. Fidelidade ao amor. Deus é verdade (Dt 32, 4; 1Jo 5,20) e amor (1Jo 4,8). Emunah, fundamental a uma cultura da vida. Nesta verdade, o princípio de contradição não existe: morrer é viver; perder é ganhar; o último é primeiro; dividir é multiplicar; o erro pode ser uma certeza; utopia é realidade, O que é loucura para o mundo pode ser sabedoria para Deus, etc. O filósofo Blaise Pascal ao questionar o racionalismo ocidental observou: “a contradição não é sinal de falsidade e tampouco a falta de contradição é sinal de verdade”. Louva-se quem busca a verdade, independente da contradição ou da falta dela. O Encontro se dá na busca, na caminhada da vida. 

 

Das muitas frases bíblicas, uma pelo menos sempre me provocou: “a verdade vos libertará” (Jo 8,32). Que verdade é esta capaz de libertar? Provavelmente não é aquela cujo pensamento está preso à coisa ou aos fatos, incapaz de transcender. Penso em Jesus ao falar do filho pródigo (Lc 15, 11-32). Jesus lança mão de uma parábola, para ilustrar uma realidade presente. Diante da falta de amor e arrependimento o Mestre apresenta alguns personagens que retratam a misericórdia e o pecado. Jesus apresenta uma teologia onde cujo centro é o amor, não qualquer amor, mas aquele que leva à beleza da vida. Quero esta teologia e, com Rubem Alves, posso dizer: “Quero uma teologia que esteja mais próxima da beleza do que da verdade, porque da visão da beleza surgem os amantes, mas com a verdade se acendem fogueiras”.

 

Santo Agostinho foi um dos primeiros pensadores cristãos a considerar a verdade sob o ponto de vista da razão e da fé. Em Verdadeira Religião entendia que a verdade habita a alma humana, porém não é ato puramente humano, é ação gratuita de Deus, puro ato de amor, sob o qual foram criadas todas as coisas: “ame e faça o que queres”, disse ele. São Tomás de Aquino, retomando a filosofia aristotélica e considerando a reflexão agostiniana, pensou a verdade como igualdade entre o pensamento e a coisa. Porém, a exigência do intelecto, feito para a verdade, é mais do que pensar e dizer dos fatos. A verdade não é algo puramente racional, ela é preexistente e, por pura graça, foi plantada no coração da humanidade a fim de resplandecer a luz, como escreve em De Veritate.        

 

Quando adolescente, as narrativas da Bíblia me fascinavam, talvez porque se encaixavam ao que eu vivia. Apesar de me ver cheio de erros e propenso à mentiras, não o era; via nas coisas uma verdade que não era fruto da união entre intelecto e coisa, mas de fantasias provindas de estórias e histórias de fé. Eu imaginava outro mundo. Lembro-me Rubem Alves ao dizer que a criança vê as coisas como outras coisas. De fato. Quero um dia escrever algo sobre as grandes “mentiras” da Bíblia e suas repercussões éticas. Mentiras que, na perspectiva da Aletheia seriam um crime, mas sob a ótica da Emunah podem libertar.  

 

Voltando ao poeta indiano Rabindranath Tagore, em Pássaros Perdidos: “Se fechas a porta a todos os erros, também a verdade ficará de fora”. Eu diria: doce é a mentira de quem está condenado à verdade, no sentido mais “perfeito” do conceito.  

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