Mística: sede de absoluto

25 de Noviembre de 2017

[Por: Maria Clara Lucchetti Bingemer]




Num momento de queda e troca de paradigmas e modelos, nota-se na sociedade de hoje, que se considerava liberto da opressão e do “ópio” da religião, uma compreensão do homem enquanto ser relacional e aberto a uma autonomia heterônoma, ou seja, uma autonomia regida pela alteridade.  Explode de novo, com intensa força, a sedução do Sagrado e do Divino, des-reprimido e incontrolável

 

No fundo desta explosão religiosa complexa e plural, escondem-se várias questões de extrema importância, parece-nos, não só para a teologia como para todas as ciências sociais e humanas que se propõem lidar seriamente com este problema mais que humano da experiência religiosa ou experiência do Sagrado. 

 

Por um lado, vai uma velada crítica às Igrejas históricas tradicionais, que teriam perdido boa parte de seu caráter iniciático, mistérico, permanecendo quase que somente caracterizadas por seu aspecto institucional - articulador da comunidade, ou ético-transformador da realidade. A força que vem tomando no seio do próprio cristianismo institucionalizado o uso de técnicas das tradições orientais, terapias de auto-ajuda, ou busca de outros recursos para a experimentação da transcendência se por um lado traz preocupação, por outro pode ser encarada como sintoma de que está em curso uma nova maneira ou  tentativa de recuperar o cristianismo iniciático e mistagógico.

 

A ressacralização do mesmo mundo do qual a razão moderna apressou-se em proclamar o desencantamento e a secularidade complexifica as perguntas acima levantadas.  O reaparecimento, o reemergir, - mais do que volta - do religioso, do sagrado, a sede pelo mistério e pela mística em distintas formas aparecendo após o “banimento” ensaiado pela secularização denota uma volta (ou uma permanência) da necessidade contemplativa, um aparentemente novo emergir de valores como a gratuidade, o desejo, o sentimento e a re-descoberta, em nova dimensão, da natureza e da relação do homem com o planeta.

 

O princípio de toda experiência religiosa encontra um denominador comum no desejo seduzido, a inclinação fascinada e irresistivelmente atraída pelo mistério do Outro, que envolve, seduz e apaixona com sua beleza e sua “diferença”, que provoca o impulso incontrolável de aproximação, abraço e união.  

 

Este mistério que atrai e seduz, no entanto, não deixa de amedrontar e provocar distanciamento reverente e trêmulo, de humildade pobre e impotente (cf. Ex 3,6-7: “E Moisés cobriu o rosto, porque não ousava olhar para Deus”). É a violência mesma da atração que submete e se parece a uma torrente volumosa e apavorante, ou a um “fogo devorador” que devora e consome, mas ao mesmo tempo embriaga e delicia, o que a faz ser sentida tão radicalmente ameaçadora e inexorável como a própria morte, apesar de que seu segredo seja a fonte da vida. “É assim que a esposa do Cântico dos Cânticos, ferida de amor pela visão do Amado, geme, “enlanguesce de amor” (Ct 2,5) e exclama: “o amor é forte como a morte e a paixão violenta como o abismo” (Ct 8,6).

 

É um fato, portanto, que o Eros divino se apresenta sempre como mais forte que o ser humano, vencendo suas resistências e se impondo por sua majestade.  Sob o toque ao mesmo tempo suave e violento de seu amor, o profeta inclina a nuca e se rende, exclamando: “Tu me seduziste, Senhor e eu me deixei seduzir. Foste mais forte que eu e me venceste!” (Jr 20,7). E, sob sua liderança, a esposa infiel retorna sobre seus passos, abandona seus amantes e se deixa docilmente conduzir ao deserto, à nudez e ao despojamento do primeiro amor da juventude.  (cf. Os 2,16ss)

 

Ao mesmo tempo, no entanto, com seu irresistível poder de atração, e uma vez conquistado e “ferido” o coração humano, o Outro Bem-amado se esconde, retirando-se da capacidade de ser atingido por aquele ou aquela em quem acendeu uma chama inextinguível de desejo. Revela-se, assim, como o Imanipulável, sobre o qual o ser humano não tem poder. Ao contrário, deixa bem claro que é o próprio ser humano aquele que deve viver sob sua dependência.  O deus assim desejado e experimentado não se rende às impaciências frenéticas do sujeito humano, nem a sua ansiedade apaixonada, mas, soberanamente livre, vai encher com sua plenitude quando e como desejar, a pobreza expectante e humilde que não deixa de buscá-lo e por ele espera onde ele se deixa encontrar, para dele receber a salvação (a saúde) e a santidade. 

 

O que é certo é que homens e mulheres de hoje, como os de todo tempo, continuam a experimentar o drama de sentir-se limitados e frágeis e, no entanto, feitos para a união com o Sem-limites.  E, no fundo mais profundo de si mesmos, percebem-se habitados pelo desejo ardente e incontrolável de entrar em comunhão com esta incompreensível realidade que se chama sagrado - a qual, devido ao fato de ser incompreensível não é sentida como menos real - de tocar e ser tocados pela Beleza Infinita; de tremer de amor sendo possuídos pela santidade divina, pelo Mistério Invisível que atrai e seduz e cuja vida chama a participar e se integrar. 

 

É este mistério de Alteridade que lhes propõe a profunda comunhão na gratuidade. O amor passa, então, a governar suas vidas e a transformá-las segundo a inexorabilidade e a radicalidade de Sua vontade.  

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