Por uma teologia negra

23 de Noviembre de 2017

[Por: José Neivaldo de Souza]




Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, 

por sua origem ou ainda por sua religião. 

Para odiar, as pessoas precisam aprender, 

e se podem aprender a odiar, 

elas podem ser ensinadas a amar.

(Nelson Mandela).

 

Celebra-se no dia 20 de novembro, o dia nacional da consciência negra onde se lembra Zumbi dos Palmares, líder negro que lutou pela libertação dos escravos durante o período da escravatura no Brasil. Esta memória é importante, pois nos possibilita uma reflexão sobre a situação dos negros e negras que, ainda hoje, após 129 anos da abolição, sofrem preconceitos e falta de respeito

 

É com os pés nesta realidade, de opressão e falta de perspectiva daqueles que sofrem pelo jugo das injustiça e falta de amor que gostaria de direcionar nossa reflexão. A partir da Bíblia e, mais especificamente, à luz do texto de São Lucas (Lc 13, 10-13) podemos observar esta realidade e pensá-la em outra perspectiva.

 

A Pontifícia Comissão Bíblica, ao tratar da interpretação da Bíblia na Igreja, observa que não basta se contentar com a leitura do texto em seu contexto de origem, mas que busque uma interpretação que “nasça da situação do povo”, principalmente um “povo” que vive em circunstância de opressão e desigualdade social. Seguindo esta orientação, é preciso assumir a perspectiva dos pobres e ler os textos bíblicos num contexto de solidariedade efetiva.

 

O texto de Lucas 13,10-13 diz que Jesus ensinava no sábado, numa sinagoga, onde encontrava-se ali uma mulher com um “espírito de enfermidade, havia já dezoito anos” e não conseguia endireitar-se. Jesus, olhando para aquela pessoa, a chamou e pôs sua mão sobre ela dizendo: “Mulher estás livre da tua enfermidade”. Curada, ela glorificava a Deus.

 

O “espírito de enfermidade”, por traz da maneira como ela caminhava, diz respeito não só à sua condição existencial, isto é, à sua dimensão física, psíquica e espiritual. Imagine esta mulher olhando para o chão, sonhando com o dia em que ela, de forma ereta e sem dor, iria observar o céu, as pessoas ao seu lado e o mundo à sua frente. Jesus viveu numa época onde os enfermos, além de seu sofrimento físico, eram prejudicados pelos preconceitos advindos de uma sociedade psicologicamente doente

 

A religiosidade e a religião oficial entendiam que quanto mais grave a doença, mais pesado era o pecado. Neste sentido, a enfermidade era também uma questão espiritual que se expandia atingindo a personalidade, trazendo transtorno às relações sociais. A mulher encurvada era, de certa forma, uma metáfora de uma sociedade machista, sexista, moralista, legalista e preconceituosa.   

 

Pela fé em Jesus ela foi liberta do “espírito de enfermidade”. Ela podia ficar em casa, entregue à depressão e aguardando a lei da punição, que certamente viria, pois havia uma ideologia que levava os cidadãos a crer nisso. Mas, ela foi para a sinagoga e quem sabe para se livrar do “peso dos pecados” cometidos.

 

Jesus, longe de julgar a mulher, cheio de ternura e misericórdia, faz com ela se sinta liberta daquele espirito e amada por sua comunidade. Quem não tinha voz e nem vez se vê incluída no amor divino. José Antônio Pagola observa que o amor compassivo de Jesus está na raiz da força curadora. Ele sofre, se colocando no lugar de cada homem, mulher e criança mergulhados na enfermidade. A vontade de Jesus é que todos experimentem já, em sua própria carne, a misericórdia que os liberta do mal.   

 

Jesus, em dia de sábado, impõe as mãos sobre a mulher e este gesto é curador, pois neste momento ela se transforma em uma nova mulher. Agora não olha só para o chão, mas expande a visão e passa a ver o horizonte, os lados e o céu. É no sétimo dia que se dá o milagre, assim como no sétimo dia Deus havia terminado sua obra completa e perfeita: a criação (Gn 1). No sábado, Jesus cura de forma perfeita e completa. Para o mestre, descansar é libertar-se do cansaço; o cansaço da dor, do sofrimento, da opressão. Jesus chama aquela mulher ao repouso. Em Mateus ele diz: “vinde a mim todos vós que estais cansados e fatigados sob o peso dos vossos fardos, e eu vos darei descanso” (Mt 11,28). 

 

Apesar de estarmos a dois mil anos de distância de Jesus, a situação parece não ter mudado e o físico contemporâneo Albert Einstein nos certifica disso ao dizer: “triste época! É mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito”. A situação de preconceito, injustiça e desigualdade atinge de maneira nefasta os mais pobres e quando se trata de mulher a situação piora. A situação de muitas negras, nesta sociedade, não é diferente. O medo do preconceito faz com elas estiquem o cabelo a fim de ser aceita neste padrão social; faz com que elas não encarem de frente os seus perseguidores e nem lutem por uma visão mais crítica e libertadora; faz com que a fé seja alienada de tal forma a priorizar uma vida após a morte já que a vida, nesta terra, é só dor e sofrimento. Muitas, ligadas às suas raízes, ainda conseguem formar uma consciência crítica e libertadora, mas há ainda muito o que fazer. Uma teologia, que trate de refletir esta situação, apontando para a misericórdia de Deus, pode ajudar a transformar esta sociedade enferma e lugar de justiça e amor. 

 

Jesus, em nome de Deus, vem libertar todo aquele que está cansado e oprimido pelo peso desta estrutura sócio-econômico-religiosa injusta e preconceituosa. O corpo inteiro, sofrido pelo peso da injustiça, da opressão e da humilhação, se regozija com a cura da coluna que o sustenta. Deus perfeito, em Jesus, caminha com os imperfeitos, vulneráveis e pobres que desejam alcançar sua luz e serem felizes.   

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