10 de Noviembre de 2017
[Por: Maria Clara Lucchetti Bingemer]
Vemos ocorrer, com grande frequência, a desvalorização e, até mesmo, a deterioração, de palavras ricas em significados. A consequência disso é que estas passam a ser compreendidas de forma errônea e inadequada. Foi o que ocorreu com o termo mística. Decaído de sua nobre significação original, acabou por designar uma espécie de fanatismo, com forte conteúdo passional e larga dose de irracionalidade.
Assim, a palavra mística tem permanecido conectada a algo sobrenatural e fora da realidade, gerando inclusive certo temor em mencioná-la e repeti-la. Por muitos estudiosos e críticos, a mística é vista com certa suspeita e desprezo pois, segundos estes, a mística não leva em consideração o ser humano inserido na história. Seja em que âmbito esteja sendo referida ou analisada (religioso ou ateu), ela é sempre vista em uma perspectiva “dualista, mais precisamente da oposição entre o natural e o sobrenatural”.
Um dos motivos da desvalorização do real valor da mística aconteceu no século XVII. Nesse período a mística oscilou de forma espantosa. Enquanto viveu o chamado “século de ouro”, foi também vista como algo que merecia desconfiança, o que a levou a permanecer como algo apartado do cristianismo e sobretudo do pensar cristão.
De fato, posta no âmbito do excepcional, do sobrenatural, a mística não podia senão ficar do lado de fora do terreno comum e normal da vida humana, restando-lhe um lugar marginal precisamente por causa de alguns fenômenos extraordinários que sucedem em seu âmbito.
Sobre a mística muitas vezes tem pesado um silêncio suspeito e um olhar estereotipado. A psicanálise, graças a Freud, tem lançado grandes suspeitas sobre a sanidade mental dos místicos, considerados pessoas completamente passivas, sem vontade e desejos, alegrias e tristezas, quando não neuróticas, histéricas e anormais.
Deixou-se de ver o místico como um ser humano igual a qualquer outro. Este vai para um lugar isolado e longe do mundo para estar em contanto permanente com Deus, fora dos problemas que envolvem a todos. Trata-se de visão equivocada e preconceituosa que não corresponde à realidade e à riqueza com a qual a mística tem agraciado a humanidade.
Lendo a história da mística cristã e sobretudo a história contemporânea da mesma, através dos relatos de seus protagonistas, vê-se que os elementos que compõem a experiência mística não podem ser sem mais anatematizados e desvalorizados como irresponsavelmente se tem feito. Pelo contrário, os místicos em geral – e muito especialmente os místicos contemporâneos - foram e são pessoas perfeitamente ativas, comprometidas e engajadas com as questões de seu tempo.
E se encontramos ao longo da história do cristianismo grandes figuras místicas que são religiosos e monges contemplativos, é possível encontrar igualmente, à margem do calendário da Igreja e seus processos de canonização, homens e mulheres que viveram e vivem a união com Deus e o compromisso com o mundo de forma extraordinariamente integrada e luminosa. Quanto mais íntimos e próximos de Deus, mais a experiência mística demonstra a necessidade da proximidade com o mundo e se insere na luta por melhorá-lo, sempre levando em consideração o valor e a dignidade da vida humana.
Karl Rahner, o maior teólogo católico do século XX, diz: “o cristão do futuro será místico, ou não será de forma alguma”. Assim Rahner exprimia aquela que não é tanto uma previsão, mas uma afirmação de valores. Se, de um lado, de fato, o iluminismo varreu para longe – de forma benéfica - os elementos supersticiosos da religião, por outro contribuiu para evidenciar o núcleo místico do cristianismo a partir da mensagem essencial de Jesus: o reino de Deus está presente e se encontra dentro de vocês.
Nesta afirmação de Rahner podemos começar a entender a mística dentro de seu real contexto. A riqueza e a profundidade interior segundo o cristianismo devem desembocar sempre, naturalmente, na ação transformadora. Esta pode assumir diferentes aspectos, dependendo das circunstâncias: pode ter um caráter marcadamente religioso, caritativo, mas pode também se configurar como social e política.
De qualquer modo e em qualquer forma que se apresente, trata-se de algo totalmente contrário à alienação ou à fuga da realidade. Há muitas figuras de místicos onde podemos constatar tais afirmações, porém suas biografias são pouco conhecidas, sendo muitas vezes desvalorizadas e negativamente idealizadas.
É exatamente nos testemunhos desses místicos que encontramos a melhor forma de compreender a mística, de obter uma informação segura sobre a natureza e sobre o conteúdo desse da experiência que significa. Na verdade, eles e elas são os primeiros teóricos da sua própria experiência, e é reconhecendo como autêntico seu testemunho e a interpretação por eles proposta sobre o mesmo que se pode ir definindo os contornos do que se chama experiência mística. Essa, por sua vez, é necessariamente pluridisciplinar, pois se trata de um fenômeno totalizante, no qual estão integrados todos os aspectos da complexa realidade humana.
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