Os animais, portadores de direitos

09 de Noviembre de 2017

[Por: Leonardo Boff]




A aceitação ou não da dignidade dos animais depende do paradigma (visão do mundo e valores) que cada um assume. Há dois paradigmas que vêm da mais alta antiguidade e que perduram até hoje.

 

O primeiro entende o ser humano como parte da natureza e junto dela, um convidado a mais a participar da imensa comunidade de vida que existe já há 3,8 bilhões de anos. 

 

Quando a Terra estava praticamente pronta com toda sua biodiversidade, irrompemos nós no cenário da evolução como um membro a mais da natureza.  Seguramente dotados com uma singularidade, a de ter a capacidade de sentir, pensar, amar e cuidar. Isso não nos dá o direito de julgarmo-nos donos dessa realidade que nos antecedeu e que criou as condições para que surgíssemos. A culminância da evolução se deu com o surgimento da vida e não com o ser humano. A vida humana é um sub-capítulo do capítulo maior da vida.

        

O segundo paradigma parte de que o ser humano é o ápice da evolução e todas as coisas estão à sua disposição para dominá-las e poder usá-las como bem lhe aprouver. Ele esquece que para surgir precisou de todos os fatores naturais, anteriores a ele.  Ele juntou-se ao que já existia e não se colocou acima.

 

As duas posições têm representantes em todos os séculos, com comportamentos muito diferentes entre si. A primeira posição encontra seus melhores representantes no Oriente, com o budismo e nas religiões da India. Entre nós além de Bentham, Schopenhauer e Schweitzer, seu maior fautor foi Francisco de Assis, dito pelo Papa Francisco em sua encíclica “Sobre o cuidado da Casa Comum” como alguém “que vivia uma maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a natureza e consigo mesmo…exemplo de uma ecologia integral” (n.10). Mas não foi este comportamento terno e fraterno de fusão com natureza que prevaleceu.

 

O segundo paradigma, o ser humano “mestre e dono da natureza” no dizer de Descartes, ganhou a hegemonia. Vê a natureza de fora, não se sentindo parte dela mas seu senhor. Está na raiz no antrropocentrismo moderno. O ser humano dominou a natureza, submeteu povos e explorou todos os recursos possíveis da Terra, a ponto de hoje ela alcançar uma situação crítica de carência de sustentabilidade. Seus representantes são os pais fundadores do paradigma moderno como Newton, Francis Bacon e outros, bem como o industrialismo contemporâneo que trata a natureza como mero balcão de recursos em vista do enriquecimento.

 

O primeiro paradigma –o ser humano parte da natureza– vive uma relação fraterna e amigável com todos os seres. Deve-se alargar o princípio kantiano: não só o ser humano é um fim em si mesmo mas igualmente todos os viventes e por isso devem ser respeitados

 

Há um dado científico que favorece esta posição. Ao descodificar-se o código genetico por Drick e Dawson nos anos 50 do século passado, verificou-se que todos os seres vivos, da ameba mais originária, passando pelas grandes florestas e pelos dinossauros e chegando até nós humanos, possuimos o mesmo código genetico de base: os 20 aminoácidos e as quatro bases fosfatadas. 

 

Isso levou a Carta da Terra, um dos principais documentos da UNESCO sobre a ecologia moderna, a afirmar que “temos um espírito de parentesco com toda a vida” (Preâmbulo). 

 

O Papa Francisco é mais enfático: “caminhamos juntos como irmãos e irmãs e um laço nos une com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à Mãe Terra” (n.92). 

 

Nesta perspectiva, todos os seres, na medida que são nossos primos e irmãos/as e possuem seu nível de sensibilidade e inteligência, são portadores de dignidade e de direitos. Se a Mãe Terra goza de direitos, como afirmou a ONU, eles, como partes vivas da Terra, participam destes direitos.

 

O segundo paradigma –o ser humano senhor da natureza– tem uma relação de uso com os demais seres e os animais. Se conhecemos os procedimentos da matança de bovinos e de aves ficamos estarrecidos pelos sofrimentos a que são submetidos. 

 

Adverte-nos a Carta da Terra: “há que se proteger animais selvagens de métodos de caça, armadilhas e pesca que causem sofrimento extremo, prolongado e evitável” (n.15b). Ai nos recordamos das palavras sábias do cacique Seatle (1854): “Que é o homem sem os animais? Se todos os animais se acabassem, o homem morreria de solidão de espírito. Porque tudo o que acontecer aos animais, logo acontecerá também ao homem. Tudo está relacionado entre si”.

 

Se não nos convetermos ao primeiro paradigma, continuaremos com a barbárie contra nossos irmãos e irmãs da comunidade de vida: os animais. Na medida em que cresce a consciência ecológica mais e mais sentimos que somos parentes e assim nos devemos tratar, como São Francisco com o irmão lobo de Gubbio e com os mais simples seres da natureza.

 

Leonardo Boff é articulista do JB on line e escreveu:Francisco de Assis: saudade do paraíso, Vozes 1999.

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