27 de Setiembre de 2019
[Por: Agenor Brighenti]
No artigo anterior, apresentamos a concepção de mundo no pensamento grego e na Bíblia. Agora, vejamos algumas características da concepção de mundo no itinerário da teologia, da antiguidade à época contemporânea. O modo como concebe o mundo vai influir diretamente na missão da Igreja e na vivência da fé cristã. Veremos também que a evolução histórica da concepção de mundo permanecerá atrelada ao entendimento de Santo Agostinho, da Igreja antiga ao advento da era contemporânea, só será superada com a renovação do Vaticano II.
A concepção de mundo em Santo Agostinho
Na Igreja antiga, mais precisamente no seio da teologia patrística, havia duas visões distintas de mundo: uma ligada a Santo Irineu (+ 202) e outra a Santo Agostinho (+ 430). A primeira vem da tradição bíblico-semita, fundada numa antropologia unitária, isto é, sem separação entre corpo-alma, espírito-matéria, história da salvação e história da humanidade; a segunda é oriunda da filosofia grega, mais exatamente do estoicismo, caracteriza pelos dualismos citados, com uma visão pejorativa do mundo, do corpo, da sexualidade, espiritualista. Dada a cultura da época, marcada pelo neoplatonismo, a concepção bíblico-semita de Santo Irineu será eclipsada pela concepção dualista de Santo Agostinho, que reinará na Igreja até o advento da era contemporânea.
Resumidamente, para Santo Agostinho, o cosmos se divide em dois reinos: a civitas terrena (a cidade dos homens) e a civitas Dei (a cidade de Deus). Pelo “pecado de Adão”, o mundo foi corrompido e tornou-se mau. E permanecerá mau até o juízo final, quando no Cristo Ressuscitado tudo será restaurado, recriado, recapitulado. Até lá, o cristão deve tomar distância do mundo - da Cidade dos Homens, e refugiar-se na Cidade de Deus, no âmbito espiritual, procurando salvar sua alma. Dado que o pecado corrompeu o mundo, a oposição entre graça-pecado é entendida como oposição entre graça-natureza. O mundo passa a ser sinônimo de pecado e o corpo tido como fonte de concupiscência. Daí a atitude de Santo Agostinho de desconfiança do mundo material e as numerosas exortações para fugir do mundo (fuga mundi), desprezar o corpo, exaltando a virgindade e a vida contemplativa em relação ao casamento e à vida ativa. Segundo ele, o ser humano não encontra seu consolo no mundo; só em Deus se tranquiliza seu coração inquieto.
A concepção de mundo na Idade Média e na Modernidade
Na Idade Média, a teologia escolástica deixa para trás Platão, mostrando interesse por Aristóteles - o filósofo da natureza. É conhecido o axioma de Santo Tomás que “a graça se apoia sobre a natureza”. Entretanto, a falta de ciências que abordem as realidades terrestres a partir delas mesmas, a concepção cristã de mundo continuaria atrelada ao modo como Santo Agostinho o havia entendido.
No século XVI, com a irrupção da civilização moderna e o surgimento das ciências metodologicamente a-religiosas, culturalmente, dar-se-ia a superação da visão pejorativa e espiritualista de mundo. Mas, como a teologia não se abriu a estas ciências, continuou reproduzindo a visão de mundo de Santo Agostinho, tal como atesta a “Imitação de Cristo”, de Tomás Kempis, publicado em 1441, um livro de espiritualidade devocional na perspectiva da “fuga mundi”, mais lido do que a Bíblia. A própria Reforma protestante, que acolhe valores da modernidade como razão individual e livre arbítrio, teologicamente, continuaria atrelada à concepção de mundo de Santo Agostinho. Para Lutero, como o mundo foi corrompido pelo pecado de Adão e uma árvore má não pode dar frutos bons, o ser humano peca em tudo o que faz. Suas obras não têm mérito algum; só a fé e a confiança nos méritos de Cristo pode salvá-lo.
A concepção de mundo na teologia contemporânea
Na época moderna, a teologia continuou antiga e medieval, apesar da mudança na compreensão do mundo operada pelas ciências da natureza e a filosofia. Caberia à teologia contemporânea, no século XX, uma vez superadas todas as tentativas de retorno à cristandade, tratar de recuperar o atraso. Isso só foi possível graças a um diálogo da teologia com as ciências naturais, em especial a teoria da relatividade, a física, a bioquímica e a astronáutica. Por exemplo, para R. Bultmann, não dá para separar revelação de Deus da história, nem sua interpretação de uma consciência situada no mundo. Para D. Bonhoeffer, a cruz de Cristo não nos leva a fugir do mundo, antes a assumi-lo para salvá-lo. Para Teillard de Chardin, a história da humanidade, as ciências e o progresso, em meio a contradições, vão levando toda a obra da Criação a convergir para “Cristo tudo em todos”.
Era a teologia, finalmente, depois de 1500 anos, através de uma releitura da Bíblia em uma “volta ás fontes” ajudada pelas ciências, compreendendo que o pecado afetou a Criação, mas não a corrompeu. Que o mundo, criado Deus, era bom e continua bom, ainda que marcado pelo pecado. Que o plano da redenção recapitulou o plano da criação e, portanto, no Corpo Cósmico de Jesus ressuscitado, o mundo já está potencialmente redimido, desde agora, dando, assim, consistência salvífica à história da humanidade, sem ter que esperar pela escatologia final. Que para continuar a obra redentora de Jesus, da qual a Igreja é sinal e instrumento, cabe aos cristãos não fugir do mundo, mas, ao contrário, é preciso se inserir nele, pois, “o que não é assumido não é redimido”. Compreende-se que a Igreja está no mundo e existe para a salvação do mundo. Que não é o mundo que está na Igreja, mas é a Igreja que está no mundo. Que o mundo é constitutivo da Igreja, sem que ela deixe de ser santa, pois é lugar da presença de Deus, assim como a obra da Criação.
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