O laicato e o exercício do sacerdócio (O laicato na Igreja e no mundo 9)

08 de Marzo de 2019

[Por: Agenor Brighenti]




Pelo Batismo, todo o Povo de Deus é um povo profético, sacerdotal e régio. Entretanto, a Igreja, a partir do século IV, ao configurar-se no binômio clero-leigos, havia eclipsado o sacerdócio comum dos fiéis conferido pelo Batismo, monopolizado pelos ministros ordenados. O presbítero passa a ser denominado “sacerdote” e “ministro do culto”, tendo reduzida sua identidade e missão aos ofícios litúrgicos, tal como no judaísmo e nas religiões pagãs. 

 

Quase um milênio e meio depois, o Concílio Vaticano II resgatou o sacerdócio comum dos fiéis, colocando o sacerdócio ministerial ao serviço dos fiéis não-ordenados, no seio de uma Igreja toda ela ministerial, a partir da centralidade da Palavra, que  faz do ministro ordenado, antes de tudo, “ministro da Palavra”. O cristianismo não tem “sacerdote”, mas um povo todo ele sacerdotal, presidido por ministros ordenados.

 

O eclipse do sacerdócio de todo batizado

 

A descaracterização da liturgia da Igreja primitiva, plasmada numa diversidade de ritos no seio de uma assembleia toda ela sacerdotal, começou já no século IV, com a passagem: das pequenas comunidades com celebrações nas casas, para cerimoniais massivos, em basílicas; da assembleia celebrante ao padre como único ator da liturgia, rezando em voz-baixa e de costas para o povo; da celebração eucarística como ceia ao redor de uma mesa, à missa como sacrifício oferecido pelo “sacerdote” num altar de pedra; da simplicidade das celebrações domésticas aos rituais com os esplendores da corte imperial; das vestes do cotidiano a ministros do altar revestidos das honras e indumentárias típicas dos altos mandatários do império, etc. 

 

Com isso, a missa deixa de ser um ato comunitário, para converter-se numa devoção privada, tanto do “sacerdote” como de cada um dos fiéis em suas devoções particulares. O sentido pascal da celebração litúrgica é deslocado para devocionismos sentimentais, em especial a meditação da paixão e morte de Cristo. Enquanto o padre, num altar distante, reza a missa de costas para o povo, os fiéis se entretêm com suas devoções particulares, em torno aos santos. A própria comunhão é substituída pela “adoração da hóstia” e a festa de Corpus Christi se converte na festa mais importante do ano litúrgico, superior inclusive à festa da Páscoa. 

 

A reforma litúrgica do Vaticano II e o regate do sacerdócio comum

 

Segundo o Concílio, dado que pelo Batismo o Povo de Deus, como um todo, constitui um povo profético, sacerdotal e régio, na liturgia, o padre preside uma assembleia toda ela celebrante. Consequentemente, o protagonista da celebração litúrgica não é o padre, mas a assembleia. Por isso, o povo passa a rodear o altar e o padre a presidir a assembleia celebrante de frente para ela, dialogando com ela, em sua língua. O padre deixa de ser chamado “sacerdote”, pois preside uma assembleia toda ela sacerdotal. O canto litúrgico é devolvido à assembleia e o coral ou o grupo de canto, que cantava sozinho, perde seu sentido. Para inserir o presidente da celebração no seio da assembleia, as vestes litúrgicas são simplificadas e se supera o caráter pomposo e suntuoso da liturgia, pois o rito, quanto mais simples, mais se parece com o modo discreto de Deus se comunicar.  

 

Para o Concílio, a presença real de Cristo na liturgia está nas espécies consagradas do pão e do vinho, mas também na assembleia reunida, na Palavra proclamada e no presidente da celebração.  A celebração eucarística passa a ser antes, de tudo, banquete, memorial do único sacrifício de Cristo, que se prolonga na história através de uma ceia. Por isso, o rito eucarístico passa a ser celebrado na “mesa do altar”, sobre a qual se apresenta as espécies consagradas mais como “alimento e bebida” do que “corpo e sangue”. Toda a assembleia passa a ter acesso à comunhão sob as duas espécies. E para visibilizar a Igreja como Povo de Deus todo ele profético, sacerdotal e régio, os sacramentos passam a ser celebrados no seio de uma assembleia litúrgica.

 

Entraves atuais no exercício do sacerdócio comum dos fiéis

 

Após duas décadas de avanços na renovação do Vaticano II, um gradativo e longo processo de involução eclesial instaurou-se na Igreja, também no campo da liturgia, que se prolongou oficialmente até à eleição do Papa Francisco. Expressão desta involução é a volta do binômio clero-leigos, também na liturgia, estampado na volta à denominação do “presbítero” como “sacerdote”.  

 

A separação entre presidência e assembleia ou a monopolização do sacerdócio do batismo pelos ministros ordenados se manifesta hoje de diversas formas: na usurpação do protagonismo da assembleia pelo presidente da celebração, tendendo a ser o único celebrante frente a uma assembleia expectadora; nas procissões de entrada, verdadeiros cortejos que põem em evidência, quando não separa o presidente da celebração de uma assembleia toda ela celebrante; no grupo de leigos e leigas que faz parte do cortejo, revestido de trajes clericais e posicionado num presbitério separado da nave do templo, separando-o da assembleia; no grupo de canto, cada um com seu microfone, acompanhado por instrumentos musicais em alto volume, que inibe, quando não usurpa o canto da assembleia, etc. 

 

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